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segunda-feira, 21 de março de 2016

APOCALIPSE ZUMBI COM FINAL FELIZ

Verônica Daniel Kobs*


            Lançado em 2013, o filme Meu namorado é um zumbi, dirigido por Jonathan Levine, oferece nova perspectiva sobre o apocalipse zumbi, sobre a sociedade atual e sobre a humanidade. A história se passa principalmente em um aeroporto, cenário que privilegia características e conceitos fundamentais, quando o assunto é globalização. Segundo Stuart Hall (2001), o aeroporto é um “espaço neutro”, um não-lugar, que privilegia o trânsito, o híbrido e a dissolução das fronteiras. E é justamente nesse espaço de inter-relações que os conflitos, no filme de Levine, estabelecem-se entre três grupos: humanos, zumbis e esqueléticos. Além disso, o aeroporto, por ser localizado em região afastada do centro, facilita a divisão da cidade por um muro que separa os zumbis e esqueléticos dos humanos. Enquanto as pessoas permanecem no centro, as criaturas que as ameaçam ficam nas regiões mais distantes.
Inicialmente, como costuma ocorrer em todas as histórias de zumbis, o conflito mostra os humanos sendo perseguidos, atacados e às vezes devorados pelos zumbis. Seguindo o protocolo, o filme dá ênfase aos zumbis como oponentes dos vivos e à condição monstruosa (hipnótica e violenta) dessas criaturas. Entretanto, o zumbi protagonista se apaixona por uma de suas vítimas, uma garota que ele persegue, após comer o cérebro do namorado dela. A partir desse momento, ele passa a protegê-la e a monstruosidade zumbi passa a ser relativizada. Isso ganha maior intensidade quando os esqueléticos são apresentados na história: eles são um tipo mais desenvolvido de zumbis, que têm ímpetos mais violentos e aparência mais aterradora, diferenciando-se muito dos humanos. Em resumo, os esqueléticos são os zumbis que “desistiram” (MEU NAMORADO, 2013) e escolheram a morte em vez da vida. Os zumbis se opõem a eles porque ainda não sucumbiram à morte, de fato. Em razão disso, são mortos-vivos, literalmente, condição que os permite transitar pelos dois mundos e apresentar características relacionadas tanto à vida quanto à morte.
Ao se apaixonar pela garota, o protagonista ultrapassa a fronteira e dá um passo em direção à vida, aproximando-se mais dos humanos e distanciando-se dos esqueléticos. O amor faz com que ele substitua o instinto de devorar pelo desejo de proteger. Aliado a isso, em vez de simples grunhidos, ele tenta articular algumas poucas palavras, mesmo com dificuldades e muitas pausas. Do mesmo modo, a capacidade de sonhar (que ele havia perdido, quando foi transformado em zumbi) retorna, por meio de flashes das lembranças do ex-namorado da garota, como se, depois de devorar o cérebro da vítima, o zumbi pudesse se apropriar não apenas da parte física (miolos), mas também da psicológica (emoções e lembranças).


Cena em que a garota percebe o lado “humano” do zumbi protagonista, após compará-lo com um zumbi tradicional, dos clássicos filmes de terror.

Esse processo de humanização do protagonista, no entanto, é interrompido pelos outros zumbis, que reagem negativamente, quando descobrem a garota e o namoro, mas logo são levados a perceber que o amor é uma espécie de antídoto para a condição deles. Depois disso, enquanto eles buscam suas vidas de volta, tentando se humanizar novamente, os esqueléticos buscam a morte e, por isso, tentam garantir que a garota também se transforme em zumbi. Só assim haveria novas criaturas como eles, no futuro. Mas a escolha entre vida e morte não depende dos esqueléticos. Os zumbis querem viver, escolhem aceitar a garota e essa decisão devolve a eles, aos poucos, as qualidades humanas que eles há tempos não experimentavam: o sono, a saudade e a capacidade de sonhar.
O próximo passo para a mudança é dado pelos humanos. Na hora do confronto final, em que ambos os lados deveriam lutar para exterminar o inimigo, a garota consegue provar que as criaturas podem se regenerar. Humanos e zumbis se unem e conseguem “exumar o mundo” (MEU NAMORADO, 2013), no sentido literal de “tirá-lo da sepultura” (EXUMAR, s. n.), para metaforicamente trazê-lo novamente à vida. Diante disso, os esqueléticos são extintos e o muro, que antes separava humanos e zumbis, é derrubado. Além disso, os zumbis voltam à vida, com sequelas, mas que podem ser revertidas com o tempo e com a ajuda dos humanos.
Quinze anos depois da virada do século e do atentado terrorista às torres gêmeas, em Nova Iorque, fato que, de acordo com vários estudiosos, desencadeou a retomada do gótico, dos zumbis e de outras criaturas relacionadas às narrativas de horror, Meu namorado é um zumbi nega o extermínio, diz não à luta e faz uma contundente conclamação ao amor e à união. Nesse sentido, ele se aproxima do ideal de outro filme recente: Todo mundo quase morto (2014). Porém, o longa de Jonathan Levine corre o risco de passar despercebido para aqueles espectadores acostumados às produções mais típicas do gênero, pois nele não há aquela sucessão de conflitos, nem as cenas de extermínio que fazem de The walking dead uma das séries mais vistas de todos os tempos. Além disso, o muro, que isola e opõe grupos e até cidades inteiras na maioria das produções contemporâneas, a exemplo de Under the dome, Wayward Pines, Once upon a time, Colony e da série Divergente, é destruído ao final.
O fato é que essas diferenças não são aleatórias e justamente por isso devem ser enfatizadas. Essa nova perspectiva que o filme Meu namorado é um zumbi oferece nos obriga a contrariar pressupostos de autores importantes, como Bauman, por exemplo, que, a respeito da influência da globalização na sociedade contemporânea, chega a afirmar: “A globalização parece ter mais sucesso em aumentar o vigor da inimizade e da luta intercomunal do que em promover a coexistência pacífica das comunidades” (BAUMAN, 2001, p. 219). No filme de Levine não é isso que ocorre, já que humanos e zumbis descobrem um modo de conviver pacificamente. Essa visão, otimista e nostálgica, tanto do mundo quanto da humanidade, inverte a competição e o individualismo que Bauman enfatiza em seus textos. Sendo assim, no longa, a alteridade adquire um aspecto positivo: o outro deixa de ser ameaça e passa a ser o único modo de garantir que o mundo se restabeleça.
Muitos autores mencionam, hoje, a importância dos zumbis como um “vazio simbólico” (LEVERETTE, 2008; MOREMAN; RUSHTON, 2011). O diretor Jonathan Levine reconhece esse vazio, mas propõe preenchê-lo de outro modo, exaltando o amor e a união entre as pessoas e contradizendo a tese mais difundida sobre o vírus zumbi, segundo a qual os mortos-vivos resultam de uma espécie de mutação e evolução do vírus da raiva (NATIONAL GEOGRAPHIC, 2014). O filme, então, não apenas rejeita a lógica interna das narrativas que se inserem no novo gótico. Ele a ironiza, redimensiona a relação entre humanos e zumbis e assim consegue reverter os efeitos do apocalipse.


O zumbi protagonista e a namorada: juntos contra os esqueléticos e pela paz entre humanos e zumbis

Meu namorado é um zumbi não perpetua os estereótipos que se acumulam a cada representação do dia do Juízo Final. No filme, não há sinais do tão anunciado “fim dos tempos”. Diante disso, as questões inevitáveis são: Do que se trata então? Foi o mundo que mudou? Ou fomos nós, que desejamos mudar as coisas, após termos percebido que passamos a encarar o outro como simples inimigo, que deve ser morto, para que possamos sobreviver? Seja qual for a resposta, o dia Z se aproxima, mas existe salvação: “E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles (...); e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor (...)” (Apocalipse 21. 3, 4).

Referências:
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BÍBLIA. Português. O novo testamento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Edição revista e corrigida. Curitiba: Os gideões internacionais, 1983.
EXUMAR. In: HOLANDA, A. B. de. Novo Aurélio Século XXI. Nova Fronteira, [s. l.: s. n.]. 1 CD-ROM.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LEVERETTE, M. et al. Zombie culture: autopsies of the living dead. Plymouth: Scarecrow Press, 2008.
MEU NAMORADO é um zumbi. Direção de Jonathan Levine. EUA: Make Movies, Mandeville Films e Summit Entertainment; Paris Filmes, 2013. 1 dvd (97 min); son.
MOREMAN, C. M.; RUSHTON, C. J. (Eds.). Zombies are us: essays on the humanity of the Walking Dead. Jefferson: McFarland & Company, 2011.
NATIONAL GEOGRAPHIC. A verdade sobre os zumbis. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=
-wDIgAuDw18>. Acesso em: 22 ago. 2014.

* Professora das disciplinas de Imagem e Literatura e Teoria e Estudos Literários, no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. Professora de Língua Portuguesa e Dramaturgia no Curso de Graduação de Letras da FAE. 

segunda-feira, 14 de março de 2016

Visão da literatura em três autoras do século XX

Isadora Dutra*

Pode-se pensar a função da literatura de um ponto de vista teórico, de modo geral polarizado entre defensores da arte pela arte e aqueles que apregoam uma função engajada da arte e, mais especificamente, da literatura. Mas também é possível pensar a função da literatura do ponto de vista de quem a produz, do ponto de vista de quem escreve. Nesse caso, a reflexão acerca da função da literatura está ligada às razões de escrever.
Em um dos volumes finais de sua autobiografia, a escritora francesa Simone de Beauvoir, mais evidentemente ligada à corrente defensora de uma literatura engajada por uma função social, propõe a reflexão a respeito de como se faz uma vida, partindo do quê se compõe uma vida. Em seu desenvolvimento da questão, ela relaciona a reflexão sobre a vida à escrita: a escrita como um instrumento de refletir sobre a vida. No seu caso, reflete sobre a própria vida através da escrita autobiográfica. A autora ao mesmo tempo reconhece a diferença entre o relato e a experiência vivida, mas entende que o primeiro reporta-se à segunda e permite que dela se capte as características.
A escrita, portanto, tem papel reflexivo e revelador da vida. Isto se deve à própria condição física do relato que, sendo finito, composto por um conjunto de palavras dentro de uma quantidade de páginas, possibilita superar a fluidez do vivido. As frases fixam sentidos que não são percebidos no contínuo da experiência vivida. No entanto, as palavras sugerem imagens que são mutáveis,  fluidas na realidade e que não estão circunscritas aos limites do papel, remetendo o texto a um saber ligado ao infinito da experiência vivida.
A vida em Beauvoir é entendida, a partir da expressão sartriana, como totalidade destotalizada, o que torna impossível que se capte a vida do mesmo modo que a uma coisa. O que se pode fazer é refletir sobre a vida avaliando nela as contribuições do acaso, das circunstâncias, da necessidade e das escolhas e iniciativas do sujeito. A noção de totalidade destotalizada traz a ideia de um absoluto-relativo para o ser atrelado às circunstâncias temporais e definido pelos fatos puros e contingentes da morte e do nascimento. O paradoxo da existência humana está na não coincidência absoluta entre o ser para-si e o ser para-outro. Por isso, o ser absoluto do si-mesmo é uma totalidade sempre ausente, uma totalidade destotalizada e indissociável de sua temporalidade.
Na sua palestra para o debate de 1964, em Paris, proposto pela revista Clarté em torno do tema "O que pode a literatura ?", Simone de Beauvoir parte da noção existencialista de totalidade destotalizada para pensar a função da literatura num momento de afastamento do público literário em função da ascensão cultural dos veículos de comunicação de massa. A experiência humana no mundo é destotalizada porque existe um mundo que é ao mesmo tempo para todos nós e vivido por cada um dentro de suas circunstâncias. Cada um só pode expressar o mundo sem o conhecimento total sobre ele. Apesar de cada um envolver o mundo na sua totalidade, exprime uma unidade dele, uma singularidade. Tem-se, portanto, uma infinidade de pontos de vistas destotalizados, a partir das situações em que cada um se coloca em relação ao mundo.
As ideias de Simone de Beauvoir sobre literatura expressas no texto de 64 são pensadas pela crítica dentro do quadro da tradição modernista em função do seu entendimento da linguagem como forma de ação e desvelamento do mundo. A mesma noção de apreensão do mundo pela e a através da literatura está presente na ensaística de Virginia Woolf. A escritora inglesa aponta nas suas reflexões a respeito da ficção moderna o esforço dos escritores seus contemporâneos, entre os quais destaca o nome de James Joyce, em aproximar-se de modo mais sincero e exato da vida, nem que, para isso, precisem construir obras "desconexas e incoerentes" na aparência, rejeitando as convenções literárias de sua época e das épocas anteriores.
Uma das questões proeminentes nos ensaios de Virginia Woolf é a transformação moderna do romance. A autora afirma a necessidade do romancista de sua época de inventar os meios de expressão para uma sensibilidade nova que vê emoções "partidas em seu limiar" e não mais presentes "inteiras" na mente. O ponto de vista do romancista moderno, segundo a escritora inglesa, é o de quem está consciente da frequente incongruência de emoções e imagens tal como chegam ao espírito. Há, desse modo, um sentido de constante auto-análise e ceticismo no modo de pensar a literatura e a vida no contexto moderno.
Importa em Virginia Woolf a relação entre a mente e a vida, os movimentos incongruentes do fluxo contínuo da mente na sua tentativa de captar o "halo luminoso" que é a vida. A literatura ao mesmo tempo deve buscar captar a vida e a "própria essência da mente", com suas oscilações e lampejos de sentido. Portanto, a tarefa do escritor é, além de chegar mais perto da vida, chegar mais perto de como funciona a mente, já que, através dela, apreende-se a vida. Por isso, ela considera difícil não aclamar a obra de Joyce como uma obra prima, pois tem-se ali, segundo sua visão, a essência da mente: "Se é vida em si que queremos, aqui a temos decerto", diz ela a respeito do escritor irlandês. Entender a vida e perceber a mente se confundem no pensamento da autora.
A mente é inconstante, variada, desconexa, incoerente e, portanto, assim se manifesta a vida na consciência. É impossível, tal como aparece em Beauvoir, agarrar a vida e Virginia Woolf critica em certos escritores a técnica e habilidade em apenas fazer o trivial parecer duradouro enquanto o relevante da vida fica de fora. Na visão da autora, a vida ou o "espírito", a "verdade" ou "realidade", a "coisa essencial", que o romance tenta agarrar sempre escapa, deslocando-se continuamente, impossível de ser contida na forma tão inadequada. No entanto, o escritor moderno persiste em encontrar a forma capaz de transmitir o "espírito variável", "desconhecido" e "incircunscrito" do "halo luminoso", "envoltório semitransparente" e não ordenado simetricamente  que é a vida. Ele persiste porque só isso vale a pena, alcançar a vida através da literatura e esta é sua razão de ser.
É o que em Simone de Beauvoir coloca-se como o papel da literatura: explicar o mundo, sendo a explicação uma forma de ação no mundo. O sentido da literatura está em comunicar cada singularidade, propondo um entendimento a respeito do mundo, da vida e do ser. As situações singulares não são fechadas umas para as outras, abrindo-se cada uma para as restantes e para o mundo. A autora identifica um centro de interiorização, um eu idêntico ao longo de seus momentos que se inscrevem numa duração finita. No entanto, o ser existe dentro de uma multiplicidade inesgotável de relações que cada elemento da existência mantém com o Todo, o universo a que pertence e que não podem ser abarcadas.
Nesse sentido, a autora chama atenção para o fato de que o discurso sobre o vivido difere do vivido em si, criando um Todo passível de ser observado, refletido e compreendido. A escrita organiza, destaca, estabelece relações entre eventos vividos que não são percebidas no cotidiano contínuo e fluído da experiência vivida. Dessa forma, a literatura mostra o que não é visível na experiência cotidiana, permitindo compreendê-la.
A mesma lógica que Simone de Beauvoir aplicada à escrita, como instrumento de compreensão, aplica-se à literatura na outra ponta, a da leitura. O leitor também encontra reflexão, compreensão e revelação a partir da leitura. A literatura tem, dessa perspectiva, função reflexiva, de construção de pensamento e de autoconstrução, na medida em que permite avaliar o vivido e assim compreender a si mesmo.
A relação entre autor e leitor aparece no argumento da autora ligado ao aspecto importante de sua filosofia da necessidade e do desejo de comunicar. Assim, ela faz referência à sua decisão de escrever como uma forma de existir para o outro como escritora assim como outros existiram para ela como leitora. A escrita permite "materializar-se" em livros, que são como pontes em direção ao outro. Há um forte senso de elo no dizer da autora, um elo que se faz pelos livros, pelas palavras escritas que comunicam ideias e emoções: "E desejava também materializar-me em livros que seriam como os que amara, coisas existindo para o outro, só que marcadas por uma presença: a minha."
A frase citada da autora inclusive fala de um elo afetivo ligando autores e leitores. A comunicação através da escrita gera identificação entre experiências e sentido para o vivido porque comunicar é partilhar: "Toda dor dilacera, mas o que a torna intolerável é que quem a sente tem a impressão de estar separado do resto do mundo; partilhada, ela pelo menos deixa de ser um exílio." É na capacidade de comunicar, de partilhar que reside, para Simone de Beauvoir, "uma das funções essenciais da literatura, e o que a torna insubstituível: superar  a solidão que é comum a todos nós e que, no entanto, faz com que nos tornemos estranhos uns aos outros."
A ideia de solidão e de autodesvelamento também estão presentes nas reflexões sobre a escrita de outra francesa contemporânea de Simone de Beauvoir, a escritora Marguerite Duras. Para ela, a solidão está no processo de  escrita mesmo, que se coloca como ato solitário, exigindo um apartar-se momentâneo de quem escreve em relação aos outros em torno. É uma solidão física do estar sozinho que remete a um estado de espírito, um sentir-se apartado, distante. Trata-se de uma distância sem a qual a escrita em Duras não se produz, uma escrita que tem significado muito particular em sua obra e que diz respeito ao ato que faz entender quem se é. Somente essa escrita de busca de si é que significa para ela escrever. Ao mesmo tempo que a escrita em Duras exige o isolamento, ela é antídoto contra a solidão na medida em que é a única coisa que encanta, que preenche a vida: "A escrita nunca me abandonou".
Mas Duras é menos afirmativa do que Beauvoir: "Eu posso dizer o que quiser, eu nunca saberei porque se escreve e como não escrever." Se a função da literatura poderia ser um motivador, uma razão para escrever, em Duras ela se esvai em dúvida. A dúvida que nasce da solidão do ato de escrever e que é o próprio ato de escrever: "a dúvida é escrever". A dúvida que aumenta em torno do escritor, que nasce da solidão, é arriscada porque "a partir do momento em que se está sozinho, toca-se a desrazão". Escrever para Duras é buscar o desconhecido que existe em si, "é isso ou nada". Este é o sentido peculiar da escrita em Duras.
Há um aspecto obscuro para a autora no ato da escrita, um non-sense, um suicídio na solidão, uma loucura e uma doença de escrever que o escritor faz por todos porque, com ele, todos escrevem. É preciso, porém, ressaltar que não se trata de estar louco quando se escreve; é o contrário, é alcançar com a lucidez o desconhecido. Só a escrita permite alcançar o desconhecido para revelar algo imprevisto, trazendo-lhe para a lucidez. Em Duras, "antes de escrever não se sabe nada do que se vai escrever". Ela acrescenta: "Se soubéssemos alguma coisa que vamos escrever, antes de o fazer, não escreveríamos nunca. Não valeria a pena." A autora conclui nos seguintes termos: "Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos – nós o sabemos depois – antes é a questão mais perigosa que se pode colocar para si, mas a mais frequente também."
A literatura, portanto, em Duras também um papel revelador, sendo o ato de escrever o caminho para a descoberta do desconhecido. Duras sugere um potencial coletivo no desvelamento da escrita quando diz que, com o escritor, todos escrevem. Dessa forma, a escrita como caminho para a lucidez, através do trabalho do escritor, parte de uma autodescoberta individual no processo de escrever para um significado coletivo da literatura.
Em Beauvoir, a função social da literatura é ainda mais evidente. Primeiro, no que diz respeito ao ato em si da escrita que, para a autora, significa um reconforto em momentos difíceis, mas ao mesmo tempo transcende o particular, fazendo com que o indíviduo que escreve "comungue com toda a humanidade". Segundo, no fim essencial da literatura que está na ideia de comunicar sobre o mundo. A filósofa francesa acredita na possibilidade de comunicar e, a partir disso, compreender o que é o mundo. Ela reconhece a opacidade da linguagem, seus limites diante da experiência vivida, admite inclusive que, entre as circunstâncias que fazem cada um, resta sempre algo de incomunicável pelo discurso racional. Há qualquer coisa de irredutível na singularidade que é cada um. No entanto, a linguagem também oferece o veículo de significação comum que torna cada um acessível aos outros.
A literatura permite comunicar justamente naquilo que separa os indivíduos, superando essa separação. Há no discurso da autora a crença na possibilidade de comunicar e na literatura como caminho para essa comunicação que permite compreender o mundo e a si mesmo. Na outra ponta, pensa-se o leitor, através da leitura, presente nesse diálogo coletivo, nesse compartilhar de estados de espírito, de ideias, de inquietações.
De um lado uma voz singular, o autor, que fala a um leitor também singular de outro. As obras são capazes de lançar verdades parciais (porque são visões destotalizadas) sobre a realidade, fornecendo ao leitor uma visão de um mundo singular que se comunica com o seu. Assim coloca a questão Simone de Beauvoir: "De qualquer forma para mim, leitora, o que me interessa é sentir-me fascinada por um mundo singular que interfere no meu e no entanto é outro".
Por isso, ela diz concordar com Proust quanto à literatura ser o espaço privilegiado da intersubjetividade. Através do texto literário experimenta-se um mundo e dele uma verdade da qual se apropria sem que deixe de ser outra. Este é o "milagre" da literatura, nas palavras da escritora francesa. Experienciar a vida de outro é uma ideia que parece encantar igualmente Virginia Woolf que, a partir do narrar e imaginar vidas alheias, sente entrar na vida do outro o suficiente para ter a ilusão de não estar "amarrado a uma única mente". Escapar para dentro da mente do outro como modo de sair das "linhas retas" da personalidade é antes mais nada um prazer, o maior deles, nas palavras da autora. Mas é também um modo de chegar perto da vida, o interesse maior da literatura.
Desse modo, pode-se pensar que a literatura permite transcender a si mesmo, expandindo para além dos limites das próprias circunstâncias, tanto do ponto de vista de quem escreve quanto do de quem lê. Através do texto literário passa-se a conhecer aquilo que a cada um é inacessível de outro modo. Esse transcender que a literatura permite está associado a outra ideia fundamental no pensamento de Simone de Beauvoir e que permeia suas reflexões acerca do ato de escrever e mais especificamente da escrita literária: o princípio da liberdade. Ela chega a afirmar nesse sentido que: "Foi essencialmente no campo da criação literária que utilizei minha liberdade; (...)". A liberdade está já no próprio ato de escrever, na escolha de escrever e, depois, na liberdade ligada ao exercício imaginativo e criativo.
O sentido de liberdade encontra em Virginia Woolf a possibilidade de encontro da verdadeira personalidade, de si mesmo. Escrever para ela está atrelado ao ato de deixar-se percorrer de maneira desimpedida esse algo inconstante que é a mente, pois só se é realmente o que se é quando soltam-se as rédeas que constrangem cada um a certos padrões. As circunstâncias, segundo ela, constrangem à unidade e por questão de conveniência cada um apresenta-se ao mundo como um todo, quando, na verdade, a consciência é variada e a experiência da vida um fluxo ininterrupto de impressões. Escrever é mergulhar nesse fluxo e descobrir ali quem se é. O ato criativo é uma maneira de experimentar liberdade e, na escrita, esta cruza-se com a identidade, num processo de autodescoberta e autoconstrução.
A liberdade da escrita significa assim a descoberta de si. Mas também tem relação, em Simone de Beauvoir, com a possibilidade do novo. Escreve-se a partir do que se é, mas com algo novo, que a criação livre permite. A literatura permite, portanto, colocar em pauta aquilo que ainda não é, criar, fazer surgir o novo, angariando para si o potencial de mudança.
Por isso, escrever para Beauvoir é uma forma de ação no mundo. O fim da literatura é explicar o mundo mas é também gerar esse potencial de transformação que está atrelado à busca pela descoberta de uma verdade. A escrita significa a busca de uma verdade ainda oculta, simplesmente não revelada ou ainda desconhecida. A obra comprometida busca por essa verdade. Numa "obra autêntica", diz Simone de Beauvoir, o escritor se procura, busca sua voz singular capaz de manifestar uma verdade, a da sua relação com o mundo. A verdade expressa pelo autor diz da verdade do leitor nesse encontro de mundos intersubjetivos que é a literatura.
O escritor, segundo Simone de Beauvoir, busca intervir na história pela ação, pela indignação ou revolta. Ele faz isso harmonizando todos os instantes inconciliáveis de uma experiência humana, restituindo aquilo que o ser tem de singular e reintegrando em cada um o senso de "comunidade humana". Daí a necessidade, diz a autora, de a literatura falar "daquilo que mais radicalmente nos encerra na nossa singularidade", a morte, a solidão, a angústia, o fracasso.
É assim que a literatura retira o leitor do seu desespero, de seu isolamento, reconectando-o. A literatura torna visível o que há de opaco no ser: "Cada homem é feito de todos os homens e só se compreende através deles, só se compreende através do que eles deixam transparecer de si próprios e através de si próprios, iluminado por eles". Ou seja, é através do olhar do outro que é possível enxergar a si mesmo. A literatura gera o conhecimento daquilo que há de mais profundo, de mais difícil acesso, o ser. Experimentar "o gosto de outra vida" por meio da literatura faz compreender a própria vida através do exercício de ver o mundo do ponto de vista do outro. A literatura cria para o leitor a chance de ver de outra posição que não a sua, expandir os limites das próprias circunstâncias, do próprio olhar. Por isso, oferece um modo de conhecer o mundo e ao mesmo tempo uma forma de autoconhecimento.
Ver o mundo do ponto de vista do outro retira cada um de seu estado existencial fundamental de solidão sem que se perca a própria singularidade, mas saindo dela para reencontrar-se num sentido coletivo, pertencendo ao grupo humano através da comunicação. É nesse sentido que a autora diz da necessidade de certos temas na literatura que mais dão ao sujeito a impressão de isolamento, como a morte, que só pode ser vivida de modo singular, mas, no entanto, pode ser comunicada a partir de uma voz na literatura, de um ponto de vista que carrega a marca de alguém e propõe ao leitor mudar de universo ou de posição no mundo, percebendo que não é sozinho na dor, que há verdades compartilhadas.
Há, dessa forma, também um sentido catártico na literatura tal como descrita em Beauvoir, tanto do ponto de vista da escrita quanto da leitura, na medida em que ambas atividades promovem a minimização do isolamento, a superação da separação existencial. Do ponto de vista do escritor, isso se dá pelo exercício da liberdade criativa e, do ponto de vista do leitor, por meio da atividade imaginativa que o projeta para dentro de um universo que não é o seu.
Percebe-se, portanto, apesar das divergências de pontos de vista em relação a outras questões em torno da literatura, que nas três autoras aparece a ideia de literatura como revelação, como processo de descoberta. Tal descoberta tanto diz respeito a um conhecimento do mundo, mas também e principalmente ao autoconhecimento, propondo a literatura como forma de reflexão e de busca do que há de desconhecido em si e, por fim, como forma de autoconstrução na medida em que revela e permite entrar em contato com a própria identidade.


BEAUVOIR, Simone. Balanço Final. Tradução Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
________________. In: RODRIGUES, Urbano Tavares (org). O que pode a literatura? Lisboa: Editorial Estampa, 1968. (Polêmica, 3)
DURAS, Marguerite. Écrire. Paris: Éditions Gallimard, 1993. (Collection Folio,  2754)
WOOLF, Virginia. O valor do riso e outros ensaios. Tradução e organização Leonardo Fróes. São Paulo: Cosac Naify, 2014.


*Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.