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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

LITERATURA BEAT: UMA GERAÇÃO NA ESTRADA

Luiz Zanotti*

Um dos mais importantes eventos literário/culturais ocorrido na contemporaneidade aconteceu na década de 1950, tendo como um dos principais expoentes o escritor Jack Kerouac. Na época quando a linha principal de conduta moral seguia o que se classificou como “mito americano do sucesso” que predicavam uma existência voltada para o objetivo da acumulação de renda, e portanto respeito, através do trabalho árduo e da determinação. Este conceito é muito próximo ao da ascese intramundana de Max Weber, que prediz o privilegio ao trabalho e acaba negligenciando o relacionamento familiar, levando à falta de atenção e carinho para com os filhos.
Neste contexto, Kerouac faz declarações retratando  indivíduos desviante como heróis, como a afirmação que faz em  On the Road (1957) em que transforma um ladrão de carros e vigarista como um novo tipo de santo americano. Assim, numa época em que ensinamentos zen-budistas eram considerados propaganda comunista, a luta de Kerouac para tornar vigaristas e desordeiros em heróis estava fadada a surpreender os críticos e preocupar o FBI.
As características principais da geração beat são as rupturas e inovações radicais em arte, ciência, espiritualidade,filosofia e estilo de vida; a diversidade; a comunicação verdadeira e aberta e profundo contato interpessoal, bem como generosidade e a partilha democrática dos instrumentos; a perseguição pela cultura hegemônica de subculturas contemporâneas;  e o exílio ou fuga.
A reação do “status quo” a esse novo desenho fez com que  a escritora americana Caroline Bird dissesse em um artigo na Harper’s Bazaar, em 1957, que “Não é possível entrevistar um hipster porque o seu principal objetivo é se manter fora da (...) sociedade”.
O estilo de vida beat “se referia a um estilo de vida aventureira adotado pelos que, sem eira nem beira, andavam à deriva pelas estradas da América em busca de aventura, aproveitando-se do “American Way of Life”. Eduardo Bueno8 comenta que foi Kerouac “quem havia dado ressonância e expandira o significado da palavra beat, que escutara pela primeira vez na boca de Herbert Huncke, marginal homossexual que fazia ponto em Times Square, NY, e que aparece brevemente em On the Road sob o nome de Elmer Hassel”.
O estilo literário beat de Kerouac, Ginsberg e Burroughs tinham muitos pontos em comum. Todos eram radicais quanto à revelação de pensamentos íntimos e/ou aspectos da realidade, eles utilizavam algo semelhante ao fluxo de consciência como método, algo para superar qualquer impulso no sentido de cautela e da autocensura.
. Seguindo a linha dos estudos de cultura, o presente projeto busca verificar o processo de construção da subjetividade em romances e poemas pertencentes a fase da literatura americana conhecida como geração beat. A literatura beat que se estabelece no cenário da década de 1950, com um dos seus mais importantes poetas, Jack Kerouac retratando indivíduos desviantes como heróis, tais como uma personagem que era ladrão de carros e vigarista. Mas a geração beat também trabalha a idéia de um novo tipo de santo americano, assim um marginal era tido como uma pessoa importante frente ao. Na contramão desta ideologia, os beats trabalharam em suas obras ensinamentos zen-budistas, que na época, eram considerados como propaganda comunista.
Dentro desta idéia, estamos çançando um projeto cujo objetivo é analisar como os beats trabalharam para tornar vigaristas e desordeiros em heróis, modificando o conceito do mito do sucesso americano, ou seja:
1.                  Problematizar as relações de poder entre a contracultura e o “american way of life” na formação do sujeito.
2.                  Investigar o conceito de indústria cultural e sua aplicação no contexto da análise da criação artística literária.
3.                  Reflexão sobre a a subjetividade nos autores da geração beat.
4.                  Explorar as estratégias que nortearam o trabalho da escrita dos escritores da geração beat.
5.                  Investigar como se processa o encontro entre a literatura e a sociedade nos textos destes autores.

6.                  Discutir a obra de Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Gregorio Corso, Willian Burroughs, entre outros em relação a prosa espontanea.


*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

PONDERAÇÕES SOBRE “ACESSOS DE PALAVRAS” DE ELIAS CANETTI

Sigrid Renaux*

Dentre os ensaios que constam em A consciência das palavras, de Elias Canetti (1905-1994), prêmio Nobel de Literatura de 1981, destaca-se “Acessos de palavras” por apresentar, de maneira sucinta, um assunto que talvez as pessoas que emigram para outro país não estejam plenamente conscientes, em sua ânsia de sobreviver a qualquer custo. São banidos, prisioneiros ou soldados, como pondera Canetti, aos quais acrescento os inúmeros refugiados que hoje em dia partem em definitivo para o exterior, sem perspectivas de voltar ao país natal. Neste ensaio, apresentado como “palestra proferida na Academia de Belas-Artes da Baviera” em 1969, o próprio Canetti esclarece no Preâmbulo à obra que “quis descrever o que acontece com uma língua decidida a não capitular: seu verdadeiro objeto é, portanto, a língua, e não aquele que fala” (CANETTI, 1990, p. 10).
Partindo da perspectiva canettiana – verificar o que acontece com a língua materna no momento em que ela é transposta para um novo ambiente – procuro, ao examinar a sequência de constatações e argumentos que o escritor apresenta, concretizar esta verificação com ponderações sobre exemplos que me ocorrem de escritores ou simplesmente de pessoas quando estão no exterior por mais tempo, em qualquer situação e em contato com uma língua estrangeira dominante. Como Canetti esclarece quase ao final do ensaio, “não se trata aqui da aprendizagem de uma língua estrangeira na terra natal, numa sala de aula com um professor (...); trata-se, ao contrário, de estar entregue à língua estrangeira no domínio desta, onde todos estão do lado dela e, juntos, com aparente razão, golpeiam – despreocupada, decidida, ininterruptamente – a pessoa com suas palavras” (CANETTI, 1990, p.172).
Para Canetti – falando de sua própria experiência, pois continuou a escrever em alemão, que aprendera aos oito anos, mesmo morando principalmente em Londres – “a primeira coisa que ocorreu [à lingua materna] foi ter ela passado a ser tratada com outra espécie de curiosidade” (p. 169). Não apenas nas “confrontações literárias” com a linguagem corrente, mas principalmente nas particularidades da língua alemã, pois nela agora “tudo chamava a atenção; antes, eram apenas umas poucas coisas” (p. 170). Ou seja, passamos a valorizar mais aspectos de nossa própria língua, ao compará-la com a língua dominante, percebendo nela a riqueza (ou falta) de determinados termos ou expressões idiomáticas em comparação com a dominante. Basta lembrar o tão citado exemplo da palavra “saudade”, inexistente em outras línguas, ou a “Canção do Exílio’, de Gonçalves Dias, que revela, já na primeira estrofe, a percepção do poeta de que “as aves que aqui gorgeiam/não gorgeiam como lá” ampliando assim a riqueza sonora das palavras para incluir a sonoridade dos gorgeios dos pássaros.   
Outro aspecto salientado por Canetti é a percepção de “uma redução da auto-satisfação”, ou seja, o escritor que permanecesse com sua língua materna – em contraposição aos que adotaram a língua do novo país para escrever – e, portanto, sem “perspectiva de alcançar uma meta externa” (p. 170), passaria por “tolo” entre seus “companheiros de destino” e, pior ainda, entre “a gente do país” em meio à qual tinha de viver “era já como se não fosse ninguém”(p. 170). Em outras palavras: o escritor seria desdenhado e ignorado duplamente, por não haver se adaptado à nova língua como instrumento do fazer literário. Levando-se em consideração que Canetti continuou escrevendo em alemão, língua de alcance tão amplo como o inglês ou o francês na época, qualquer generalização torna-se problemática. Basta lembrar o exemplo de Joseph Conrad, polonês que aprendeu inglês apenas aos vinte e um anos ao entrar na marinha britânica, mas se tornou um dos grandes escritores britânicos dos séculos XIX e XX. O fato de que a língua polonesa não lhe oferecia, como o alemão, a oportunidade de “alcançar uma meta externa”, certamente influenciou em sua decisão de escrever em inglês.
Continuando sua argumentação, Canetti afirma que permanecer escrevendo em sua língua materna mesmo morando no exterior, e, portanto, sem leitores, “proporciona um singular sentimento de liberdade”, pois “tem-se uma língua secreta só para si, língua que não serve mais a nenhum objetivo externo, de que se faz uso quase que solitariamente”, como uma crença à qual os seres humanos se apegam quando todos ao ser redor a desaprovam (p.170). Para Canetti, porém, este é apenas um aspecto superficial da questão, pois o que realmente vale é o fato de que “uma pessoa com interesses literários tende a assumir que são as obras dos poetas que representam a língua” (p. 170). Entretanto, mesmo que essas obras constituam nosso alimento, Canetti alega que
entre as descobertas que se fazem vivendo no domínio de uma outra língua, uma possui um caráter todo especial: a de que são as próprias palavras que não nos abandonam, as palavras isoladas em si, para além de todo contexto espiritual mais amplo. Experimenta-se o poder e a energia singular das palavras, e do modo mais forte, quando se é com frequência obrigado a substituí-las por outras. (p.170-71)
Como Canetti continua, o dicionário do estudante que se esforça por aprender outra língua “é subitamente virado do avesso”, pois “tudo quer ser designado como a era antes, e propriamente”. Consequentemente, “a segunda língua, que agora se ouve todo o tempo, torna-se óbvia e banal; a primeira, que se defende, ressurge sob uma luz particular” (p. 171). É neste ponto que o ensaio de Canetti remete ao título, “Acessos de palavras”, após haver recordado como, estando na Inglaterra durante a segunda guerra mundial, “enchia páginas e páginas com palavras alemãs (...). De repente, como que tomado por um furor e fulminante como um raio, cobria algumas páginas de palavras” (p. 171). Pois, ao perceber que esses “acessos de palavras eram patológicos” Canetti nos revela o que está por trás desse título: “acesso” tanto como movimento psicológico passageiro, quanto como fenômeno patológico que a espaços cessa e recrudesce. Ou seja, como todo grande escritor, Canetti experimentava “o poder e a energia singular das palavras”, das palavras como paradigmas, no eixo da seleção, e não encaixadas em frases, como sintagmas, no eixo da combinação. Como ele conclui,
desde essa época, não resta para mim a menor dúvida de que as palavras estão carregadas de uma espécie particular de paixão. Elas são, na verdade, como os homens; não se deixam negligenciar nem esquecer. Como quer que sejam guardadas, elas conservam sua vida, e surgem repentinamente, exigindo seus direitos. (p. 171)  
Mesmo que Canetti diagnostique a causa desses “acessos de palavras” como sendo “sinal de que a pressão sobre a língua [alemã] tornou-se demasiadamente forte” e que o inglês “se impõe com frequência cada vez maior sobre a pessoa” (p.172), nesses “movimentos e contramovimentos”, as palavras da língua antiga “embotam-se na luta com suas rivais”, enquanto “outras alçam-se acima de qualquer contexto e resplandecem em sua intraduzibilidade” (p. 172).
Esta luta de paradigmas apresentada por Canetti, parece-me, é tão relevante para nossa conscientização do que ocorre quando somos “dominados” pela língua estrangeira mesmo sabendo que retornaremos à terra natal, quanto para os citados pelo ensaísta no início do texto, sem perspectivas de retornar a seu país. É o modo pelo qual as palavras de nossa língua materna permanecem intactas em nossa memória, resplandecentes em sua “intraduzibilidade”, enquanto outras perdem o lustro, cedendo espaço para novos paradigmas estrangeiros.
Para finalizar, tentando justificar esses “acessos de palavras”, esses “fatos linguísticos privados” (p. 172) que está apresentando à plateia, Canetti pondera que, se por um lado, numa época em que está em jogo a própria humanidade, em que os acontecimentos se multiplicam incessantemente, “seria de esperar de um ser humano, que apesar de tudo se atreve a pensar, algo bem diferente de um relato sobre o agon de palavras que se sucedem independentemente de seu sentido” (p172-3). Ou seja, Canetti está ciente de que estes “acessos de palavras” não são o que sua plateia esperava ouvir. Por outro lado, considera que o “ser humano hoje, em sua fascinação pelo coletivo, cada vez mais entregue à própria sorte, busca uma esfera privada que não lhe seja indigna, que se diferencie nitidamente do coletivo, mas na qual este se espelhe por completo e com maior precisão” (p.173). Esta “tradução” de uma esfera coletiva para a privada, “tão interminável quanto necessária” é, para Canetti, a língua alemã, na qual ele continua, como escritor, “a caminhar com conscienciosidade e responsabilidade”. Em outras palavras, se todo ser humano está à procura de uma esfera privada na qual sua vida coletiva também se espelhe, esta tradução atinge a todos nós¸ assim como atingiu, muito mais profundamente, o escritor, como artífice da palavra.

Referências:
CANETTI, E. A consciência das palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


  *Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. 

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

SERIA A ODISSEIA UM FOLHETIM?

Edson Ribeiro da Silva*

O homerólogo Victor Berard escreveu certa vez que a Odisseia tinha sido composta para as mulheres. Mas a Ilíada não, este poema seria para o público masculino.
Na odisseia, há uma espécie de alter-ego de Homero. No banquete no palácio de Alcínoo, um cantor distrai os presentes. Ulisses pede a ele que cante sobre a Guerra de Troia. O cantor é Demódoco, identificado como um cego capaz de emocionar com os relatos que faz das façanhas dos grandes heróis. Homero se identifica nesse poeta, é uma assinatura sua. (Desde que o aceitemos como a tradição o representa.) A emoção também é uma marca do poeta épico. E a Odisseia é um exemplo disso. 
Afinal, quem leu a Ilíada estranha uma certa falta de eventos épicos na Odisseia. A própria natureza de algumas personagens mostra aquelas características que, muito tempo depois, seriam chamadas de “românticas”. Nausícaa é a doce moça que sonha com um casamento. Ela é gentil, prestativa, age como uma heroína de novela antiga. Já a ninfa Calypso é apaixonada, ardente, capaz de colocar todos os seus privilégios em condição menos prioritária que poder ter relações sexuais com o herói. Uma típica vilã, dessas que se suicidam ou matam por amor. Falar das personagens ligadas a Ulisses, então, é constatar aquelas características marcantes nos heróis e adjuvantes românticos: a esposa é fiel e recatada, o filho arrisca a vida para procurar o pai, o trabalhador é caridoso e confiável, a ama-de-leite vê no senhor um filho. Personagens sensíveis, amorosas, fieis; apenas tais qualidades as fazem empunhar armas para ajudar o herói. Sem essa necessidade, estariam tranquilas em suas rotinas.
E a situação tão esperada da luta e da vingança ocorre de forma rápida, basta um canto, dentre os vinte-e-quatro que formam a obra, para que a grande ação épica se dê. E a ajuda da deusa Atena ao tornar o herói invulnerável apressa uma luta que poderia durar mais tempo, gerar mais conflitos. As demais ações épicas, as mais conhecidas da obra, estavam no relato de Ulisses, quatro cantos em que ele se mostra como homem superior, o mesmo capaz das grandes lutas travadas na Ilíada. Nos outros dezenove cantos, predomina o afeto, ou sentimentos recorrentes no folhetim, como a humilhação do homem superior, a identidade oculta daquele que pretende se vingar. Há encontros emocionantes do filho com o pai que não via desde criança, da esposa com o marido que ela supunha falecido, do herói com seu pai já idoso, ou com a mãe morta, no Hades. Os heróis pobres ganham belas recompensas.  E quase todos esses dezenove cantos se apoiam em uma ação de teor afetivo. Reconhecimento precedido por longos suspenses. Por saudades guardadas por anos, pela necessidade de conter a emoção quando se está disfarçado. E pelos folhetinescos “ganchos”, que seguram a ação esperada para que acabe no canto seguinte, como ocorre no encontro de Telêmaco com Ulisses, ou quando pai e filho escondem as armas dos pretendentes. A Odisseia parece ter inventado a estrutura do folhetim, da novela de televisão, milênios antes. 
Seria quase a mesma situação dos folhetinistas do século XIX, ao chamarem de “leitoras” o seu público. A expectativa de que o público feminino quer se emocionar, sobretudo diante de situações que envolvem o amor da mulher, ou os percalços passados por familiares que se amam para que possam viver felizes. Talvez a Odisseia tenha sido composta para um público assim, capaz de chorar como Ulisses ao ouvir os cantos de Demódoco. A afetividade, na Odisseia, domina a maioria dos cantos e das ações das personagens do bem. A personagem boa precisa ser heroica mesmo em uma história de amor.
Seria exagero dizer que o público de Homero já manifestava as características tão comuns ao grande público das narrativas nos séculos XIX e XX?  O velho chavão de que homem gosta de filme de ação e mulher, de drama sentimental?  Diferenças já tão marcantes nos dois poemas homéricos. 



*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

UMA SELFIE DO NOSSO TEMPO

Verônica Daniel Kobs*

            A peça Selfie, com direção de Marcos Caruso e atuações de Mateus Solano e Miguel Thiré, foi apresentada na edição 2015 do Festival de Teatro de Curitiba. O espetáculo conta a história de Cláudio (Mateus Solano), que decide parar de usar qualquer tipo de rede social ou aplicativo e migrar para um sistema único, encarregado de armazenar todas as informações relativas ao usuário. Porém, um dano irreparável provoca a perda de todos os dados, que deixam de existir não apenas no novo sistema, mas também nos outros ambientes virtuais. A partir desse momento, Cláudio não existe mais. Ele foi simplesmente deletado da rede e, na sociedade de hoje, sabe-se que o fato de ser excluído do ambiente virtual equivale praticamente a não existir no mundo real.
Confiando cegamente na eficácia do novo sistema, Cláudio perde informações importantes e precisa recuperar inúmeros dados (números de telefone, fotos, e-mails, lembranças...), para ter sua vida de volta. O prejuízo é grande, pois, contemporaneamente, criou-se uma espécie de intermediário para acessar informações pessoais: “‘A informação escaneada, que no mundo analógico poderia ser acessada apenas pelo uso de nossos olhos, de repente é armazenada em um ambiente onde só pode ser recuperada pelo uso da tecnologia (...)’” (SALERNO, 2015, p. 55). Além disso, segundo a autora, que usou como base dados da Academia da Arte das Imagens em Movimento, Ciência e Tecnologia de Hollywood: “‘O buraco negro digital aprisiona o projeto. (...). Se o recurso começar a definhar, a informação poderá ainda ser recuperada, mas, depois de um tempo, ela não estará mais acessível devido a arquivos corrompidos, a formatos ou tecnologias obsoletos’” (SALERNO, 2015, p. 55).
O projeto de Selfie é audacioso. O tema é atual e vai contra hábitos vigentes da sociedade, fazendo uma espécie de conclamação ao modo de vida do passado. Com a mesma irreverência, o espetáculo opta também por uma estrutura bastante particular: o cenário é simples e vazio; o figurino resume-se a um macacão azul; os personagens que contracenam com Cláudio, quando aparecem, são todos representados por Miguel Thiré; não são usados adereços de cena (com exceção de uma cadeira/pufe e do próprio celular); e tanto os sons como os objetos são sugeridos por onomatopeias e gestos, respectivamente. Nesse contexto, o público, auxiliado pelos gestos dos personagens, é levado a imaginar quase tudo: a ação de jogar coisas em uma pia de cozinha, por exemplo; o café que é derrubado sobre o computador de Cláudio; e até o computador em que o protagonista trabalha. Essas características da peça são particularmente interessantes, porque se assemelham a sistemas de simulação interativa, que “dão ao usuário a sensação de estar em ‘interação pessoal e imediata com a situação simulada’ (LÉVY, 1999, p. 66-67)” (RÉGIS, 2012, p. 183), ou de simulação por imersão. Outra similaridade se dá pela ausência de um cenário típico e de objetos na peça, já que: “Os sistemas de realidade virtual estabelecem relações de fraca percepção física, espacial e temporal” (RÉGIS, 2012, p. 183).


A partir de gestos, o elenco de Selfie convida o público a imaginar os adereços das cenas

Selfie, ao debater a (in)existência de Cláudio no mundo virtual (e também no mundo real), se aproxima de produtos culturais que recentemente enfocaram as mesmas questões, a exemplo de: Ela (EUA, 2013), filme dirigido por Spike Jonze, estrelado por Joaquin Phoenix, que conta a história de Theodore, que se apaixona por Samantha, um sistema operacional (“OS1”); e Homens, mulheres e filhos (EUA, 2014), filme de Jason Reitman, com Jennifer Garner no papel principal, que trata da influência da tecnologia na vida das pessoas. De fato, o computador e a internet, na contemporaneidade, reconfiguraram as relações sociais. Aliás, para Fatima Régis, a questão chega a ser bem mais complexa: “As novas tecnologias permitem novos modos de experiência, fazendo repensar o próprio conceito de humano” (RÉGIS, 2012, p. 184).
Para demonstrar isso, Selfie apresenta e critica os novos hábitos de nossa sociedade, que comodamente relega à máquina a responsabilidade por guardar momentos felizes, datas importantes, compromissos, etc. Nas relações cotidianas, vários momentos da peça refletem situações bem desagradáveis: a mãe (Miguel Thiré) constata a magreza do filho Cláudio pela foto que tira dele, enquanto o recebe, sem dar muita atenção ao que ele diz, em meio a curtidas, minivídeos caseiros e outros posts nas redes sociais (e ela vê a foto antes mesmo de ver o filho nos olhos, pessoalmente); a namorada (Miguel Thiré) diz a Cláudio que rompeu o namoro porque ele tinha sumido das redes sociais por 5 horas, sem dar nenhuma satisfação; e o próprio protagonista é flagrado utilizando dois computadores ao mesmo tempo, com várias janelas abertas, em grupos de redes sociais distintas e ainda falando ao celular, com uma chamada em espera. De modos distintos, todas essas cenas tratam do fator tempo, da simultaneidade, da urgência e da instantaneidade, temas que são uma espécie de cartão de visitas de nossa época. Ítalo Calvino já escrevia sobre isso, no final de 1990, quando afirmou que, no próximo século, “outros media triunfariam” e que, “dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso” arriscariam “reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea” (CALVINO, 1998, p. 58). Hoje, Zygmunt Bauman confirma a hipótese de seu antecessor, ao mencionar algumas ações muito próprias de nosso tempo: “(...) encurtar o espaço de tempo da durabilidade, (...) esquecer o ‘longo prazo’, (...) enfocar a manipulação da transitoriedade (...), dispor levemente das coisas para abrir espaço a outras igualmente transitórias e que deverão ser utilizadas instantaneamente” (BAUMAN, 2001, p. 146, ênfase no original).
Entretanto, em Selfie, não é apenas o tempo que condiciona as ações dos personagens. Relacionado a ele está a tecnologia, que fornece os recursos e os aparelhos que privilegiam a rapidez e o imediatismo. Sobre isso, a peça também debate a questão da indústria, afinal, os produtos necessitam de peças e acessórios, abrangendo vários ramos dos mercados de informática e telefonia, principalmente, incluindo fabricantes, revendedores, etc. Desse modo, um ciclo vicioso se estabelece: a sociedade atual se caracteriza pela rapidez, o mercado atende essa demanda e o consumidor obedece, simultaneamente, a dois comandos: do modismo e da oferta. Bauman inverte essa associação, afirmando que a sociedade “foi remodelada à semelhança do mercado” (BAUMAN, 2008, p. 76). Em outras palavras, o mercado dita as regras, a sociedade “compra a ideia” e cada consumidor trata de se adaptar à nova tendência, iniciando um processo de “afiliação” (BAUMAN, 2008, p. 71): “A ‘sociedade de consumidores’, em outras palavras, representa o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas” (BAUMAN, 2008, p. 71). E é exatamente assim que a história de Selfie termina...
Durante a peça, Cláudio vai, gradativamente, se deparando com velhos hábitos. Primeiro, um amigo relembra a época em que todos sabiam os números de telefone dos outros de cabeça. Depois, o protagonista é surpreendido por um menino desconhecido que lhe pede ajuda com uma pipa. Cláudio resiste, mas nesse instante a peça opõe duas realidades, representadas pelos símbolos antagônicos da pipa e do celular. O garoto insiste, Cláudio se vê naquela criança e acaba percebendo que o convite vai muito além de empinar pipa. Aceitando aquele chamado, o personagem pode reviver a infância, entrar em outro ritmo de tempo, mais frouxo e descompromissado; pode ser livre e experimentar novamente a sensação de brincar ao ar livre, ultrapassando as fronteiras dos espaços fechados, da solidão reclusa ou da alienação absoluta que a tecnologia impõe, mesmo quando se está ao ar livre, em meio a uma multidão.
Por esses motivos, o protagonista diz “sim” ao menino. A partir daí, ele percebe a necessidade de mudar seus hábitos e tenta estabelecer um novo modo de vida, desvinculando-se, ao menos um pouco, do império tecnológico. Porém, nesse instante, Cláudio encontra um idoso, amigo dele, que atualmente está superconectado. Baseando-se em sua experiência, o rapaz tenta alertá-lo sobre as desvantagens do uso desenfreado da tecnologia, mas o idoso não se convence e propõe que eles façam uma selfie para registrar o reencontro. Cláudio também não desiste e tenta dissuadir o amigo da ideia, sugerindo que eles apenas guardem aquele momento na memória. A reação é imediata e negativa, pois o senhor responde, em tom repreensivo: “Memória? Eu já tenho 94 anos! Vamos fazer uma selfie mesmo!” (SELFIE, 2015). O final é pessimista e nos remete às afirmações de Bauman sobre a sociedade do consumo. Cláudio é o único a perceber a tecnologia como causa de aprisionamento e alienação e, mesmo assim, a conclusão dele resultou de um processo lento, desencadeado pela insistência do garoto. Isso significa que a maioria das pessoas, hoje, compartilha quase tudo: fotos, vídeos, piadas, mas ainda não compartilha a ideia de que há um novo estilo de vida, com velhos hábitos, mais liberdade e também com mais tempo. Será que daqui a algum tempo alguém vai curtir isso? Afinal, todos nós somos responsáveis pelo futuro. Não nos conscientizamos disso, mas a cada momento estamos fazendo nossa história e podemos decidir o final que teremos: “A narrativa sobre a aventura da humanidade não está concluída. Nós escreveremos seus próximos capítulos. Cabe a nós decidir se seremos zumbis, robocops ou qualquer devir-outro que desejarmos. Como diz o menino Hogart para o robô em O gigante de ferro (1999): Você é o que escolhe ser” (RÉGIS, 2012, p. 207).

Referências:
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
_____. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
RÉGIS, F. Nós, ciborgues: tecnologias de informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Champagnat, 2012.
SALERNO, A. Ciber limbo. Revista da Cultura, edição 93, abril de 2015, São Paulo, p. 55-57.
SELFIE. Direção de Marcos Caruso. Curitiba: abr. 2015.

* Professora das disciplinas de Imagem e Literatura e Literatura e Estudos Culturais no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. Professora de Língua Portuguesa e Dramaturgia no Curso de Graduação de Letras da FAE.  

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

“Pedro Páramo” e o destino fatal do homem

Paulo Sandrini*

Juan Rulfo


Em 1955, surge o romance de um (até então) obscuro escritor mexicano de Jalisco, Juan Rulfo. A obra: Pedro Páramo. Dois anos antes, Rulfo havia publicado o livro de contos El llano en llamas, que passou despercebido pela crítica. Mais tarde, com o êxito de Pedro Páramo, a coletânea de contos seria redescoberta. Depois dessas duas publicações, a produção literária do escritor de Jalisco seria praticamente nula. Em 1980, voltou a publicar um conjunto de relatos sobre cinema chamado El gallo de oro. E foi só; no entanto, o suficiente para deixar marcas contundentes nas letras ocidentais.
Pedro Páramo é um romance curto. No entanto, de densidade incomum e leitura difícil. Tal dificuldade é ainda proporcionada pela escassez de dados biográficos que se possui sobre o autor, cuja vida, neste caso, tanto condiciona a obra. Durante a infância, sabe-se que Rulfo presenciou o aniquilamento de sua família pela rebelião dos cristeros. Anos depois, o escritor apontou em uma entrevista que o que primeiro conheceu em sua vida foi a devastação, humana e geográfica, muito precisa e localizada em sua terra natal. O autor transporta tal experiência pessoal para a criação do fantasmal espaço de Comala, povoado habitado por mortos, árido e abandonado no tempo. Comala, então, passa a ser uma espécie de alegoria do inferno, em que, tal como na Divina Comédia de Dante, se perde toda a esperança ao se entrar ali. Juan Preciado, narrador de grande parte do romance, chega a esse inferno guiado pelo muleiro Abundio e segue em busca de cumprir uma promessa feita a sua mãe, já morta, que é a de encontrar seu pai, Pedro Páramo. Em Comala, Preciado descobre a face selvagem dessa espécie de cacique que foi seu pai. No decorrer da obra, Preciado compreende que todos os seus interlocutores até então, incluindo o muleiro, estão mortos. Ele mesmo divide uma sepultura com outra personagem. E dali, de sua tumba, assistirá ao desenlace da história em que Pedro Páramo acaba assassinado. Nessa obra, vida e morte não se distinguem. Sua atmosfera angustiante tem por base a mescla da realidade e do sobrenatural, o que coloca o leitor com a sensação de que o mundo e as ações humanas fogem a todo intento de explicação racional.
Com base em sua história pessoal e familiar, Juan Rulfo nos mostra crer em um destino fatal e absurdo que marca o percurso de todo homem, sendo impossível fugir a esse destino. Como consequência, engendra um tempo circular, em que começo e fim se confundem e a alteração cronológica dos eventos (monólogos copiosos e uma utilização inovadora no uso da linguagem) faz dessa narrativa uma obra revolucionária. Narrada em espécies de sussurros, é devedora mais da tradição oral do folclore mexicano e de seu culto à morte do que dos modernos romancistas, que Rulfo confessou jamais ter lido.
Pedro Páramo é também a história de um homem em busca de sua identidade, engendrada por uma espécie de confusão temporal e narrativa para exemplificar vários temas latino-americanos. Por exemplo, o patriarcado e o caciquismo, a crise de identidade e a obsessão com a morte típica do povo mexicano. É uma interpretação bem realizada e singular da revolução mexicana, podemos ainda inferir.
Contudo, é possível detectar em Rulfo uma fundamentação que se pretende universalista, o que se verifica em suas opções literárias. Rulfo se voltará, como leitor, à produção da periferia europeia, sobretudo da zona nórdica (Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Islândia), correspondente a dois períodos sucessivos: o fim do século XIX e o começo do século XX e o posterior entre guerras. Do mesmo modo, se voltará à produção sulista estadunidense, representada por William Faulkner, em detrimento da linha literária mais urbanizada e industrializada de Nova Iorque, que apresenta os movimentos vanguardistas e a narrativa de Ernest Hemingway. Em 1959, Rulfo confessa ao escritor e ensaísta José Emílio Pacheco que as escolas alemã e nórdica dos princípios do século passado, que criaram uma realidade e uma perspectiva social baseadas no voo da imaginação, são suas preferidas. Rulfo leu Sillanpää, Bjornson, Hauptmann e o primeiro Hamsun. Nesses, diz Rulfo, achou as bases de sua literatura. Em 1974, confessa que Hamsun o levou a planos desconhecidos, a um mundo brumoso, que o apartou de certo modo da situação de intensa luminosidade mexicana. Hamsun foi, em realidade, já na juventude de Rulfo, o princípio de contato com esse tipo de literatura. Depois, o autor mexicano buscou outros autores, como os citados anteriormente, acrescentando a sua lista Jens Peter Jacobsen, Selma Lagerlöf e também uma grande descoberta pessoal: Halldór Laxness, bem antes que esse autor islandês ganhasse o Nobel, em 1955.
Rulfo passa a propor então o encontro entre um estilo de escrita preponderantemente realista e a imaginação dada ao irreal. E além da filiação de sua narrativa a essas influências nórdicas, é necessário reconhecer que elas pertencem a situações culturais muito parecidas às que vivenciou o escritor mexicano, que assim como os escritores nórdicos sentiu-se submetido ao processo de adaptação urbana, nos anos quarenta e cinquenta, enquanto construía sua trajetória literária — uma adaptação compartilhada com enormes populações rurais. Qual Fome (1890), de Hamsun, poderíamos considerar Pedro Páramo uma espécie de resposta à modernização. O romance do norueguês é um livro diferente dos paradigmas do período, pois o autor se mostra um crítico ferrenho do Realismo e do Naturalismo, criando, como Rulfo e antes dele, uma obra de vanguarda, com componentes inéditos e atravessada por paradoxos que a fazem mordaz e ao mesmo tempo não isenta de um traço divertido. De fundo autobiográfico, Fome é um romance narrado por um personagem inteligente, mas que por motivos que não se desvelam acaba por viver na miséria, sempre faminto, sofrendo diversos reveses em seu périplo pela cidade de Christiania (hoje, Oslo), e sempre em busca de alimento. As divagações a respeito da condição humana e da sua própria situação são construídas a partir de um individualismo quase extremo. Tudo passa pelo seu crivo, por vezes de modo irônico, por vezes de modo crítico e por vezes desdenhosamente. Há uma alternância que vai da lucidez à insensatez. O personagem é quase ao mesmo tempo cômico, preocupado, sério e sagaz. As invenções estéticas e temáticas de Hamsun viriam, mais tarde, a influenciar os modernistas em sua revolução artística.
Pedro Páramo é a história de uma busca frustrada e, assim como a narrativa de Hamsun, carrega traços biográficos. A técnica narrativa é desconcertante. Na primeira parte, tem-se a narração em primeira pessoa de Juan Preciado, que é ampliada e amplificada com os relatos também em primeira pessoa de Eduvirges. Há ainda a narração em terceira pessoa, com monólogos interiores diretos de Pedro Páramo, engendrando uma situação em que quase não há distância entre o narrador e o personagem. Também, a narração em terceira pessoa, a partir de um ponto de vista onisciente.
A inversão da ordem cronológica, fazendo o que ocorre ser explicado somente mais tarde, converte a obra em espécie de quebra-cabeças. Ao leitor (como em Rayuela, de Cortázar, La muerte de Artemio Cruz, de Fuentes, ou La casa verde, de Llosa) não resta mais alternativa que a de deixar de lado sua normal passividade de simples receptor para que possa reconstruir para si mesmo o fio que conduz o romance.
Por outro lado, contrariando também a teoria sobre ser Pedro Páramo um romance cujo tema central seria mesmo (ou apenas) a revolução, Donald Shaw expõe, em seu Nueva narrativa hispano-americana, a ideia de que ao nos empenharmos em descobrir o sentido oculto da aparente desordem que nos é oferecida no romance, o método mais fácil é abandonar o já sabido, neste caso o conceito de caciquismo. Com isso, passa-se sem dificuldade ao problema do latifúndio, dos abusos de autoridade (inclusive por parte do governo mexicano), da corrupção do clero e, por fim, chega-se à ideia do fracasso da Revolução Mexicana. Mas Shaw não deixa de expor uma dúvida: como se explica um episódio tão enigmático como o do casal incestuoso? Caberia aceitar sem mais nem menos que a irmã, a única mulher em todo o livro de quem não sabemos o nome, cumpre o papel de símbolo da pátria corrompida, segundo propõe o crítico nacionalista Ferrer Chivite? E o que dizer do irmão?
A ideia de Ferrer é pouco convincente para Shaw. Com vista a aclarar o significado do episódio, temos que recordar quantas vezes, na nova narrativa, nos deparamos com a inversão dos mitos cristãos, encontrados em El Señor Presidente, de Astúrias; no Informe sobre ciegos, de Sábato; e em El lugar sin límites, de Donoso, e ainda nas evidentes referências bíblicas de Cien años de soledad, de Márquez, ficando aqui nos exemplos mais óbvios. Nesse caso, como apontou Fuentes, trata-se do casal edênico: Adão e Eva. Um Adão e uma Eva bestiais, sem prole, que jamais tomaram conhecimento de um Paraíso, muito menos de um deus bondoso. Ao contrário, vivem desde sempre desesperançados, em um inferno, regidos por um ente todo-poderoso, mas cruel. Ao entrarmos mais fundo nesse caráter mítico do romance, podemos reconhecer, segundo Octavio Paz e Julio Ortega, que a busca de Juan Preciado é a busca de um Paraíso perdido e de um Pai Todo-Poderoso. Termina com o desengano total de Juan e o assassinato simbólico do Pai por outro filho (bastardo). Com isso, podemos compreender também que Pedro Páramo contém, na verdade, uma alegoria, mas não da vida mexicana somente. Rulfo alegoriza a peregrinação do homem na terra. A busca de um paraíso perdido apenas desvela um inferno povoado de mortos e um casal Adão e Eva degradados. Mesmo a morte não oferece descanso. Segue-se sempre sofrendo, expiando uma culpa que não se sabe exatamente qual é. Nesse romance tudo é opressão: física, espiritual. Só há um elemento positivo, que é o amor sensual, pagão, entre Susana San Juan e o marido Florencio. O amor triunfa sobre a morte física, a culpa e sobre o próprio inferno. Portanto, se quisermos explicar o grande êxito literário de Pedro Páramo, temos mesmo que interpretar o romance em termos universais, fazendo sua devida relação com a desorientação espiritual do homem moderno.


*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.

Escritor e Doutor em Letras.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Uma nação, uma língua, uma literatura

Otto Leopoldo Winck*

O processo de aldeialização do globo – isto é, o processo de unificação cultural que começa reunindo clãs e tribos e tem por fim a consolidação de um sistema-mundo, para nos servirmos da terminologia de Immanuel Wallerstein – nem sempre foi contínuo e linear.[i] Antes da emergência das culturas nacionais, houve na Europa ocidental e central um sistema cultural relativamente homogêneo, assentado sobre os pilares da herança judaico-cristã e greco-romana. Neste vasto espaço social os intelectuais e literatos, por cima de suas diferenças étnicas e regionais, compartilhavam um repertório comum de regras e materiais. Por toda a Idade Média, as fronteiras políticas, extremamente flexíveis, porosas e retalhadas, não guardavam relação com as fronteiras muito mais amplas e nítidas desta cristandade de vocação universalista, onde o outro, ou estava do lado de fora (os muçulmanos), ou segregado em guetos (os judeus). Neste grande aldeia europeia não era incomum que alguém, nascido em Castela e morto em Bolonha, como São Domingos, fundador da ordem dos dominicanos, fizesse pregações na Dinamarca, circulasse constantemente por Roma e Paris, e mandasse seus discípulos fundarem conventos em lugares tão díspares como Inglaterra, Escandinávia, Alemanha e Polônia. Mais tarde, na Idade Moderna, essa respublica clericorum é substituída por uma respublica litterarum. O holandês Erasmo de Roterdã, por exemplo, lecionou com a mesma desenvoltura em centros como Paris, Lovaina, Veneza, Basileia e Cambridge, e em suas muitas viagens esteve inclusive em Portugal. O substrato cultural de todos os membros desta república é praticamente o mesmo. Longe de localismos, a literatura é “universal”. As cartas que trocam entre si – primeiramente em latim e depois em francês – atestam este fato. Com a emergência do nacionalismo, todavia, esta unidade se fragmenta e, em vez da Weltliteratur [literatura mundial], como pretendia Goethe, irrompem as literaturas nacionais, de modo que a literatura em alemão, em francês, em português vão se transformar aos poucos nas literaturas da Alemanha, da França, de Portugal, as quais vão contribuir na configuração dessas novas identidades nacionais.
Num artigo sobre a importância das atividades literárias para a formação das nações da Europa, Itamar Even-Zohar se pergunta se a literatura não seria um fenômeno inerente à realidade europeia.[ii] A resposta não é simples. “Não há, talvez, nenhuma sociedade organizada por nós conhecida que não tenha uma espécie de ‘literatura’ (...)”.[iii] Todavia, embora as atividades literárias não sejam uma exclusividade da história europeia, ele pensa que
(...) os papéis que elas desempenharam na organização da vida europeia podem, de facto, ser únicos. Quando estes fenómenos se verificam em países não europeus durante os séculos dezanove e vinte, constata-se que não se trata de uma continuação de actividades literárias previamente existentes nesses países, mas antes de uma actividade nova, resultante do contacto com as nações europeias.[iv] 
Para compreender a origem desta função talvez única que a literatura exerceu na sociedade europeia a partir do século XVIII, é preciso retroceder não só às origens da Europa mas aos albores da própria civilização. A primeira cultura letrada de que se tem notícia floresceu entre os sumérios na Mesopotâmia, onde a relação com os textos, tanto escritos quanto recitados, desempenhou um papel de destaque. Não somente a elite tinha acesso diretamente ao repositório textual, como produtores e intépretes, mas também boa parte da população, em ocasiões festivas, tomava contato com o acervo de textos. O Código de Hammurabi, as inúmeras estelas, as minuciosas descrições dos feitos dos governantes, tudo isto, embora não possa provar a acessibilidade dos textos, demonstra sua centralidade na vida social. Ao mesmo tempo, ao estabelecer a escola como uma instituição de poder, os sumérios também criaram o cânone: um conjunto de narrativas por meio das quais o mundo era interpretado.
Estas narrativas tornaram-se muito poderosas no momento de transmitir sentimentos de solidariedade, de pertença e, fundamentalmente, de submissão a leis e decretos, que deste modo não precisavam de ser impostos apenas através da força física. Assim, a cultura suméria foi a primeira sociedade a introduzir as actividades textuais como uma instituição indispensável, usando-a com o objectivo de criar uma coesão sócio-cultural.[v] 
As características desenvolvidas pelos sumérios são assumidas pelos povos que gradualmente os substituiram, como os acádios, os babilônios, os hititas, os assírios e uma série de tribos e cidades-estados que se espalham entre o Eufrates e o Mediterrâneo, para não falar do Egito, que se desenvolveu de uma maneira relativamente autônoma. Por conta das novas pesquisas, os laços entre essas sociedades e a Europa vão se clarificando cada vez mais. Como os próprios gregos reconhecem, o seu alfabeto tem origem fenícia. Ainda que não se tenha certeza, pode-se afirmar com alguma probabilidade, que a “literatura”, entendida aqui como atividade textual, “encontrou o seu caminho a partir da Mesopotâmia, tendo os hititas (e talvez os lúvios) como intermediários, até à cultura grega, através da qual se propagou, ao longo do tempo, às várias sociedades europeias, num processo em cadeia.”[vi] Enquanto não se pode medir o grau de coesão social produzido pela literatura nessas sociedades do Crescente Fértil, é na Grécia que se observa pela primeira vez evidências dessa função. Pode-se falar, nesse caso, com as devidas reservas, de uma viragem – ainda que ela provavelmente não tivesse ocorrido sem a invenção do alfabeto em Canaã. O repertório literário, até então propriedade de um pequeno círculo de dirigentes e de seus assessores, passa a ser partilhado por camadas mais amplas, ainda que não abarquem mais do que uma parcela da sociedade. E mais:
As actividades textuais têm agora lugar ao ar livre e não se limitam a hinos públicos ou a estelas com inscrições inacessíveis, mas alcançam uma audiência cada vez maior. Permitem inclusivamente uma certa crítica social e um tratamento menos reverente dos governantes (em particular na tragédia e na comédia). Além disso, as histórias dos tempos passados formam gradualmente um cânone amplamente aceite e convertem-se em elementos básicos de ensino e de auto-diferenciação para grupos cada vez mais amplos. (...)
Além disso, através destes textos, a Koiné grega alcançou muito mais êxito do que qualquer outra língua precedente (em comparação, o caso assírio foi antes um fracasso; quando o Império caiu, ninguém continuou a falar assírio: a maior parte da população já tinha passado a falar arameu). Talvez tenha sido na Grécia que se constituiu um modelo através do qual uma língua de índole literária conseguiu substituir gradualmente as variantes locais, para além de transmitir coesão sócio-cultural através dos textos. (...)
Talvez deva ser atribuída à Grécia outra mudança crucial, a saber, a clara proliferação de sistemas culturais e “literários”. Enquanto que os textos na cultura suméria (inclusive os que eram recitados em ocasiões públicas) eram compostos por membros de uma elite e os textos na Babilónia, Assíria ou nos reinos hitita e egípcio eram compostos pelos homens de letras, a Grécia proporciona-nos culturas textuais tanto de elite como de carácter popular. (...) A origem da noção moderna de “literatura” como algo relacionado com textos escritos situa-se claramente na Grécia.[vii] 
Como se sabe, etruscos e romanos, e posteriormente, todos os demais povos europeus, beberam da cultura grega. Enquanto a cultura grega, ou melhor, helenística, foi adotada como parte da cultura romana dominante, esta produziu um repertório próprio, decalcado das regras do protótipo grego. Virgílio não teria escrito a Eneida se não existisse antes uma Ilíada e uma Odisseia.
Ainda que na Idade Média vigesse na Europa uma grande variedade étnica, a herança greco-romana, aliada aos interesses centralizadores da Igreja e dos governantes, não permitiram a eclosão de entidades locais. No entanto, quando foi preciso “inventar” as nações, todo um conjunto de regras e operações já estava potencialmente à disposição.
As “nações” ou identidades francesa, alemã e italiana, do ponto de vista da coesão social, são invenções tardias. Para construí-las, foram mobilizados e utilizados processos já consagrados pelo tempo, naturalmente ampliados e adaptados às circunstâncias locais. Os textos, produzidos numa língua nova ou uniformizada de novo, funcionaram em todos estes casos como um destacado veículo de unificação para pessoas que não se considerariam necessariamente “pertencentes” a uma determinada entidade para além da sua localidade. 
Na França, o ponto crucial foi a Revolução Francesa, como já foi dito, quando a burguesia não somente amealhou o poder político da aristocracia como também se apropriou dos seus bens simbólicos. Ao mesmo tempo, ao ampliar o sistema escolar, delegou à literatura uma saliente missão na constituição de uma identidade nacional. É bom lembrar que até então boa parte dos franceses não falavam francês. “Tiveram de ser persuadidos, gradualmente, a adquirir este conhecimento, o que não teria sido possível sem os muitos textos que foram utilizados como instrumentos deste empreendimento (...).”[viii] Ou seja, a literatura, a “nova” literatura nacional, não só descreve a nação como a escreve – e, ao re-escrever seu passado, a inscreve na modernidade.

Nos casos alemão, italiano, búlgaro, servo-croata, checo e talvez mesmo no grego moderno, a “literatura” foi mesmo indispensável para a criação das respectivas “nações”. Em cada um dos casos, um pequeno grupo de pessoas, (...) conhecidos popularmente como “escritores”, “poetas”, “pensadores”, “críticos”, “filósofos” e similares, produziram um enorme corpus de textos para justificar, sancionar e sustentar a existência (ou o seu desejo) e a pertinência de tais entidades – as nações alemã, búlgara e italiana, etc. 
O caso da Alemanha,  aliás, é sintomático. Even-Zohar evoca o exemplo do pequeno Estado de Luxemburgo, um grão-ducado que estranhamente escapou ao processo de unificação alemã. Sua principal língua é o luxemburguês, um “dialeto” germânico que ascendeu ao status de língua nacional apenas pelo fato de ser a língua oficial de um Estado independente. Tal como ele, antes de 1871, havia inúmeros ducados e principados no atual território do Estado Alemão. Não houve nada de “natural” na anuência desses diminutos Estados em se unirem à Prússia,
tendo em vista a criação da união alemã, nem houve nada de “natural” na sua aceitação de uma língua denominada “Alto alemão” (Hochdeutsch), unilateralmente uniformizado (...). Mas foi a reputação dos textos produzidos nesta língua pela geração de Goethe, Schiller e outros que afinal criou a nova nação alemã.[ix]
Este pacote – “uma nação, uma língua, uma literatura”[x] – já não era, quando da unificação alemã, uma novidade. Mas de toda forma ele teve que ser deliberadamente planejado e implementado. Como no caso dos patois na França, todas as demais variantes linguísticas que não se conformavam ao novo modelo do alemão foram descartadas ou reduzidas ao estatuto de “dialetos”.
Um processo semelhante ocorreu à Itália, cuja unificação foi concluída em 1870. Com efeito, não havia nos habitantes dos vários Estados que retalhavam a península itálica nada que os tornassem “italianos”. Todavia, um conjunto de ativistas, tal como os seus equivalentes alemães, “utilizaram a reputação de textos escritos numa língua que quase ninguém falava, para popularizar o mesmo género de proposta (...).”[xi] A língua a que hoje chamamos italiano estava praticamente morta: dos 22 milhões de habitantes da península, somente cerca de 600 mil o compreendiam em 1860.[xii] Mesmo os maiores escritores em italiano, como Alessandro Manzoni (1785-1873), tinham mais fluência em francês.
Com efeito, este modelo de construção nacional revelou-se extremamente exitoso na Europa – e em seguida foi replicado com igual sucesso nos demais continentes. Na América, como não havia o diferencial da língua em relação às metrópoles, foi exigido ainda mais da literatura a construção de uma identidade diferenciada. No Brasil, basta ver José de Alencar, às voltas com seus índios, sertanejos e gaúchos, em seu empenho de configuração da identidade brasileira. Assim, da ancestral Suméria à Itália unificada, passando por uma infinidade de povos, impérios e nações, o arcabouço de atividades textuais a que chamamos literatura foi de grande relevância para a coesão social de grandes entidades coletivas – e na modernidade, junto com outros elementos, “criou” as nações modernas.

Notas
[1] Sobre o conceito de sistema-mundo (World System) cf. WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
[1] EVEN-ZOHAR, Itamar. O papel da literatura na criação das nações da Europa. In: CUNHA, Carlos Manuel Ferreira da (ed.). Escrever a nação: literatura e nacionalidade (uma antologia). Ponte Guimarães (Portugal): Opera Omnia, 2011, p.77-99. Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/papers/trabajos/IEZ_ 2011--O%20Papel%20da%20Literatura.pdf > Acesso em: 12 fev. 2012.
[1] EVEN-ZOHAR.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 79.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 80.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 81-82.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 84-85.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 90.
[1] EVEN-ZOHAR, p.  90-91.
[1] Jocosamente, Even-Zohar chama este conjunto de três itens de package deal. Ibid., p. 91.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 92.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 93. Os dados são retirados de MAURO, Tulio de. Storia linguistica dell’Italia unita. Roma: Laterza, 1963. Somente em 1980 o italiano tornou-se a língua falada pela maioria da população.



REFERÊNCIAS

EVEN-ZOHAR, Itamar. O papel da literatura na criação das nações da Europa. In: CUNHA, Carlos Manuel Ferreira da (ed.). Escrever a nação: literatura e nacionalidade (uma antologia). Ponte Guimarães (Portugal): Opera Omnia, 2011, p.77-99. Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/papers/trabajos/IEZ_ 2011--O%20Papel%20da%20Literatura.pdf > Acesso em: 12 fev. 2012.

MAURO, Tulio de. Storia linguistica dell’Italia unita. Roma: Laterza, 1963.

WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.


*Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro, capital. Depois de uma passagem por Porto Alegre, radicou-se em Curitiba. Em 2006 foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond.  2012 foi o vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia, com o volume Desacordes. Doutor em literatura pela UFPR, leciona atualmente na PUCPR e no Mestrado 
em Teoria Literária da Uniandrade.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

A ruptura psicológica/social de Vestido de noiva

Luiz Zanotti*

O ensaio a seguir busca mostrar o importante momento do desenvolvimento do teatro no Brasil, através de uma breve discussão sobre a peça Vestido de noiva a partir dos seus textos e de algumas críticas referentes a montagens das mesmas. Vestido de noiva é uma obra que está na própria origem do moderno teatro brasileiro, com Nelson Rodrigues construindo um universo dramático absolutamente original, fazendo uso do teatro da memória com maestria (parece ter tido forte influência de Eugene O’Neill, Luigi Pirandello ou Henrik Ibsen –, autores que Nelson, aliás, dizia não conhecer, embora isso fosse pouco provável), rompendo com a narrativa linear, e mostrando um sujeito pós-moderno, e, portanto, fragmentado, um sujeito que perdeu um “sentido de si” estável (Hall, A identidade na pós-modernidade).
Para que tais resultados sejam possíveis, Nelson Rodrigues divide o palco em três planos diferentes: um para a memória, outro para a realidade e o terceiro para as alucinações. O diretor polonês Ziembinski vai concretizar estas divisões através de recursos de iluminação, que divide os planos, e sonoplastia que traz as vozes de pessoas não presentes, num recurso cujo principal objetivo parece ser o de acentuar a natureza multifacetada do sujeito do inconsciente.
Assim, esta informação fragmentada, ora através da iluminação de imagens visuais obtidas pela apresentação de cenas mudas, ora através de sons que inesperadamente invadem o silêncio do teatro por intermédio de algum microfone estrategicamente colocado, ora através dos diversos planos, acabam por formar um quebra-cabeças que o espectador vai montando pouco a pouco.
Este quebra-cabeças que se passa dentro da mente da mulher atropelada, que embaralha fatos “reais”, imaginários e até alucinações correspondem aos diversos planos em que foi dividido o palco, dentro de uma trajetória não linear, que para Benjamin (Benjamin, W. In: GAGNEBIN, J. M., História e narração em W. Benjamin), em sua não linearidade, assim como o véu tecido por Penélope, se encontra nos movimentos, as vezes complementares, as vezes opostos dos fios da trama e da urdidura, na descrição do esquecer como princípio produtivo, na comparação com as franjas tecidas pelo esquecimento e seus ornamentos.
Em seu comentário sobre o espetáculo, Almeida Prado cita o ator Sérgio Cardoso, aprovando a sua atuação de uma forma como se o expressionismo nunca tivesse existido: “Sua encenação é original no sentido mais raro e genuíno da palavra, o etimológico, no sentido de provir diretamente da origem, de ter voltado ao texto, deixando-se guiar e inspirar exclusivamente por ele” (Prado, D. A. Teatro em progresso).
Enfim, Vestido de noiva apresenta ao público, o que se passa na memória de uma mulher atropelada durante uma operação de emergência, com sua mente relembrando várias passagens, reais ou num estado de delírio que muitas vezes lembra A morte do caixeiro viajante, de Arthur Miller dentro, e de uma perspectiva barroca dá face ao próprio delírio, causando uma ruptura na tradição cênica brasileira.

*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade