Pesquisar este blog

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Revelações: Poetas do 8º Período de Letras

*Sigrid Renaux

No decorrer das aulas de Poesia Norte-Americana, 1o. bimestre da disciplina Literatura Norte-Americana II, do curso de Letras Português-Inglês da UNIANDRADE, os alunos do 8o  Período tiveram a oportunidade de apresentar seus próprios poemas. Foi uma revelação surpreendente, para os próprios alunos, de quanto talento e entusiasmo seus versos estavam impregnados. E, mais ainda, como a maioria dos poemas tinha como tema recordações da infância, prova de como as imagens que retemos dessa época brotam espontaneamente quando escrevemos sem nos preocupar demasiadamente com as regras e os esquemas métricos das diferentes formas de liricidade, consagrados pela tradição literária. Seguem, pois, poemas de três alunos, com comentários nossos. No próximo blog serão comentados poemas de outros alunos.

FABIANO CAPISTRANO DOS SANTOS: “INFANTE”
 Quem era eu? Não importava...
 Queria mesmo apenas sonhar...
              Sem saber o bem, o mau não assustava,
  Somente brincando sem pensar;

Na meninice doce e divertida
                      Em total inocência inicia-se o aprendizado,
      Uma marcante lição pra toda vida
 Em acontecimento inesperado;

Recebe para seu uso no futuro
       Um ganho que não o fará inseguro
           Mas o deixará certamente mais forte.

            O menino que não sabe o que é sofrer
                     Recebe na tenra infância mesmo sem querer
  Sua primeira tonelada de morte.

Composto de dois quartetos e dois tercetos, o soneto tem como tema a infância. O uso de “infante”, no título, remetendo tanto ao substantivo – criança, menino – como ao adjetivo – relativo à infância – adquire, pela sua diacronia, conotações de tempos passados e, portanto, de saudade. Os versos, ligados fonicamente pelo esquema de rimas a/b/a/b, c/d/c/d, e/e/f, g/g/f, valorizam, assim, as lembranças do “eu poético”, a refletir sobre sua “meninice” (verso 5). Esta reflexão abrange não apenas os sonhos, as brincadeiras, mas simultaneamente o aprendizado (verso 6), que o “deixará certamente mais forte” (verso 11). O terceto final revela, entretanto, a profunda ligação entre o início e o final da vida, pois, mesmo sem saber “o que é sofrer” (verso 12), este menino já “recebe na tenra infância” (verso 13) “sua primeira tonelada de morte” (verso 14). O eu poético acrescenta assim, à leveza da infância que atravessa o poema, o peso de um tonel repleto, que pode simbolicamente evocar tanto alegrias, como, neste soneto, evocar o peso da morte, universalizando, assim, sua criação artística.


  ELISÂNGELA NARDI: “INFÂNCIA”

A pequena mão que se enroscava
Aos cabelos da pessoa amada
Buscando proteção nas noites escuras
Havia perdido a pequenez

Havia também perdido a proteção
Outro coração tomou o seu lugar
Será este outro coração
Mais puro que o seu

Mais desamparado que o seu
Mais quebrantado, ou será apenas
Seu protetor deslumbrado com
Um coração recém-chegado. 

Evocando uma cena da primeira infância, este poema revela as sensações de uma criança ao imaginar ter perdido o amor da “pessoa amada” – a figura materna? – pelo fato de outra criança – “um outro coração” – ter tomado o “seu lugar”. Composto por três quartetos, efeitos sonoros diversos equilibram o texto sonora e ritmicamente: rimas finais (proteção/coração), rimas internas (desamparado/ quebrantado/ deslumbrado/-chegado; mão/proteção), aliterações (pequena/ pessoa/ perdido/ proteção/ pequenez/ puro/ protetor), além da repetição de termos como  “proteção” (2 x) “coração”(3 x), “perdido”(2 x), que ressalta a tríade da proteção perdida para um outro coração. O eu poético fala em terceira pessoa, através de sinédoques – a pequena mão – e, assim, valoriza sua procura por proteção “nas noites escuras”. A “pessoa amada” também é concretizada através de outra sinédoque – os “cabelos” – com suas conotações simbólicas de energia, fertilidade, amor (como proteção), e que o “eu poético” havia perdido. A dúvida que permanece, para esta criança que havia perdido sua “pequenez” e, consequentemente, a “proteção” materna, é por este “outro coração” – sinédoque de “outro irmão” – ser mais frágil   (mais puro/ desamparado/ quebrantado) ou pelo fato de a mãe estar mais “deslumbrada” por este “coração recém- chegado”. Esta incerteza também universaliza a experiência vivida pela criança¸ ao se sentir desprotegida diante de uma nova realidade, com a qual não consegue ainda lidar.

JAQUELINE KUPKA: “MINHA INFÂNCIA”

Nostalgia! Alegria! Estripulias!  
No lombo de um cavalo sentia o vento
No galope dele me sentia livre
          Liberdade de sentir e ser o que sempre quis ser

      Queria tocar o céu e com cada estrela 
      Poder desejar ir além dos meus sonhos
Queria poder estar cercada pelos primos
Por quem tenho grande apreço e amo

Queria ter sido menos peralta 
Não receber as broncas que recebi de minha mãe
Tanto na escola quanto em casa
Pois além de mãe, foi minha professora

Queria ter menos ciúmes de meu irmão  
E, ao invés de competir com ele, aproveitar cada momento ao lado dele
Meu pai: pra mim foi sempre meu ídolo e modelo de caráter
Minha mãe: brava, porém com um coração gigante e modelo de caráter

Meu irmão quebrou meu monopólio de atenção
Com ele, perdi lugar no quarto de meus pais
Tive que ir pro meu quarto: sozinha
A solidão sempre me foi uma boa companhia

Gostaria de não ter perdido minha avó Julia
Está certo que ela não me dava muita bola
Só comprava chocolate para as minhas primas
Mas por quem eu chorei muito quando partiu...

Tive o privilégio de ter duas mães e dois pais
Minha mãe preta já se foi,
Meu pai preto ainda está aqui
Com eles eu podia fugir um pouco das regras de meus “pais brancos”

Com meus “pais brancos” aprendi muita coisa
Só com um olhar eu já sabia
Que o amor deles era incondicional
E que eles dariam a vida por mim

Sempre sonhei em quebrar um braço ou uma perna
Fiz muitas coisas pra conseguir
Mas não quebrava nenhuma unha
Meu irmão quebrou...

Sabores!! Cheiros!! Lugares!!
Ficava esperando ansiosa pelo fim de semana
Na fazenda de meu avô eu comia, sentia e aproveitava
Frango caipira, rios, pescar e andar a cavalo
Fui privilegiada!

Minha infância foi muito boa 
Dela, eu trago amizades, amores
E, principalmente, uma lição:
Galopar sempre, ser sempre
Sentir sempre, amar sempre
Viver intensamente

O poema “Minha infância” transborda com as mesmas emoções dos poemas acima, mas em 9 quartetos, seguidos de 1 quinteto e 1 sexteto, demonstrando, assim, a exuberância do “eu poético” ao rememorar episódios de sua meninice. Ao iniciar o 1º. quarteto com “Nostalgia! Alegria! Estripulias!”, como também o 10º., com “Sabores!! Cheiros!! Lugares!!”, fica demonstrado seu entusiasmo em rememorar cenas como estar cavalgando ao vento, ação que transporta o “eu poético” a outros universos: tocar o céu e as estrelas, ir além de seus sonhos. A repetição de “queria” – o imperfeito indicando, no passado, uma ação em processo de realização e concebida como não concluída – na 2ª, 3ª. e 4ª. estrofes, caracterizando, deste modo, um paralelismo sonoro, sintático e semântico, aproxima as ações, ao colocá-las dentro de uma estrutura de similaridade: desde os sonhos, a presença dos primos, as censuras da mãe e da professora por sua “peraltice”, os ciúmes do irmão mais novo. Em seguida, recordações das figuras do pai, da mãe, da avó Júlia, dos “pais pretos” com os quais “podia fugir um pouco das regras de meus ‘pais brancos’” – demonstrando o carinho que nutria por esse segundo casal de pais , bem como a ansiedade com que aguardava os finais de semana para poder usufruir dos “Sabores!! Cheiros!! Lugares!!” da fazenda de seu avô. A última estrofe não apenas conclui positivamente suas recordações, mas extrai da infância uma lição – lição esta que nos faz retornar ao 1º. quarteto – o “galopar sempre”, tão simbólico de liberdade de sentir, viver e amar, o que é confirmado pelas conotações simbólicas do cavalo: dentre outras, força e liberdade. Deste modo, mesmo com esta visão tão pessoal de sua infância, o “eu poético” novamente estende suas experiências a todos nós, leitores, ao nos identificarmos com essas experiências, por meio de um complexo de imagens impregnadas de emoção.

Que esses poemas sejam o início de uma trajetória criativa interminável!


*Professora das disciplinas Teorias da Poesia e Poéticas da Modernidade: dos formalistas russos a Bakhtin,  no Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

ERA UMA VEZ... A VIOLÊNCIA

*Verônica Daniel Kobs

 Em 2016, sob a direção de Matteo Garrone, foi lançado o filme O conto dos contos, baseado na obra de Giambattista Basile (1566-1638). Nas palavras do diretor:

O texto original, que é uma das maiores obras-primas da literatura italiana, foi escrito em 1600. Como tal, essa era uma época muito sombria, violenta. [...]. E são histórias baseadas em arquétipos, que falam de sentimentos retratados ao extremo e tratam de temas que são atuais até hoje. Então, pra mim, adaptar os Contos de Basile surgiu como um modo de explorar temas contemporaneamente interessantes pra mim. (TORRES, 2016)

A escolha do texto literário que serviu de base ao longa reflete uma das principais características da sociedade contemporânea, na qual a violência “surge como resultado [...] de exclusão, marcando a falta de negociação entre os locais” (SILVA, 2008). Desse modo, o filme de Garrone coincide com o tema de outros lançamentos deste início do século XXI. Um exemplo bastante específico e também com gosto de retomada é a reedição dos contos de Wilhelm e Jacob Grimm pela editora Cosac Naify, em 2012. O ponto comum entre os textos das literaturas alemã e italiana (incluindo, aqui, a adaptação fílmica O conto dos contos) é a violência. Vale lembrar que, no conto Sol, Lua e Tália, de Basile, a rainha faz o rei acreditar que ele devorou os próprios filhos, nas iguarias servidas durante um jantar. Utilizando da mesma violência, os irmãos Grimm fazem as irmãs de Cinderela mutilarem os pés, para tentarem calçar o sapato que lhes garantiria um casamento rico e talvez feliz com o príncipe. No fim da história, ambas as irmãs de Cinderela têm os olhos furados por pombas. “Esses contos são um desfile de perversidades: crianças famintas, mutilações variadas, torturas e execuções elaboradíssimas” (TEIXEIRA, 2012, p. 122-123).
            Auxiliado pelo teor imagético, o filme de Matteo Garrone faz uso do contraste e do close up para realçar a violência dos contos de Basile. A partir desses recursos, estabelece-se o exagero, que, além de representar a predominância da violência física e psicológica na sociedade atual, tem o objetivo de impactar a plateia, conforme depoimento do diretor: “Nós quisemos fazer uma homenagem às origens do cinema, ao cinema mudo... Aos filmes que trabalhavam a imagem, como fosse possível, para causar espanto no público” (TORRES, 2016). O apelo visual do filme pode ser exemplificado com esta cena:

Figura 1: Cena do filme O conto dos contos em que a rainha devora o coração de um monstro marinho, para realizar o sonho de engravidar. Imagem disponível em: <www.adorocinema.com>

Indo além da construção do apelo imagético das cenas, o filme representa a violência de vários modos, nas três mini-histórias que o compõem. Na primeira delas, são emblemáticos os desejos do rei e da rainha. Ela tem o desejo desmedido de ser mãe. Ele quer realizar o sonho da mulher e se sacrifica por isso. Na cena mostrada a seguir, percebe-se a indiferença da rainha pela morte do marido, afinal, apesar da tragédia, o coração do monstro (necessário para o feitiço que a faria engravidar) foi obtido.

Figura 2: A rainha, entre o marido e o monstro, ambos mortos
Imagem disponível em: <www.adorocinema.com>

De certa forma, a atitude egoísta da mulher reforça uma das constatações de Bauman, em Modernidade líquida, pois o autor enfatiza a predominância do interesse individual: “[...] todas as comunidades são postuladas mais projetos que realidades, alguma coisa que vem depois e não antes da escolha individual” (BAUMAN, 2001, p. 194, ênfase no original).
            Na segunda história, também existe um desejo extremo e a violência surge no preconceito, na exclusão e na busca incansável pela beleza. Duas irmãs viviam reclusas, por causa de sua má aparência, até que uma delas, após se tornar bela, por meio de um feitiço, casa-se com um cobiçado rei. No dia do casamento, a irmã “feia” e “pobre” é convidada e, durante a festa, a irmã “bonita” e “rica” se revela em todo o seu esplendor. Entretanto, ela esconde a parte relativa ao feitiço e diz à irmã que sua beleza nasceu de sucessivos processos de esfoliação, para tirar a pele velha e enrugada. Após falar com sua bela irmã, a outra decide que precisa tirar sua pele, para também tornar-se bonita e desejável. Com esse propósito, ela procura um barbeiro, que se nega a ajudá-la. Porém, um serralheiro atende ao pedido e, no meio da floresta, tira a pele da mulher, que volta ao povoado em carne viva, pingando sangue, mas feliz, pois ela acredita que logo sua beleza irá surgir, como em um passe de mágica.
Figura 3: O reencontro das irmãs e uma delas voltando à vila, após ter sua pele esfolada
Imagens disponíveis em: <http://br.web.img3.acsta.net> e <http://www.magazine-hd.com>

Esse contexto encontra correspondência na preocupação do sujeito contemporâneo com o corpo, a boa forma e a beleza. De acordo com Chiara Palmerini, o predomínio da hipocondria no mundo atual está intrinsecamente relacionado ao culto ao corpo e à saúde perfeita. A partir dessa associação, a autora propõe o uso do termo “cybercondria” (PALMERINI, 2014). De acordo com a jornalista e filósofa, esses traços culturais fazem com que, em algumas pessoas, qualquer desvio ao padrão seja considerado um sinal de doença ou disfunção.
            Finalmente, na terceira história, a violência marca a trajetória de uma princesa, dada em casamento a um ogro, pelo próprio pai. O rei organizou um concurso e propôs um desafio que ele considerava impossível de ser cumprido. Porém, o ogro foi o vencedor e a princesa foi obrigada a se casar, pela honra do rei, que tinha empenhado sua palavra. Embora a princesa tenha sofrido por um tempo, enquanto vivia em uma caverna, com seu marido, ela conseguiu retomar o comando de sua vida, após decapitar o ogro e levar a cabeça dele em um saco, como um presente para seu pai. A atitude da moça redefine o perfil da princesa, que, nos contos tradicionais, tinha a passividade enfatizada. Exatamente por isso, a escolha da princesa, em O conto dos contos, associa a violência à necessidade de reconhecimento, em consonância com o que Glauber Rocha menciona em Estética da fome: “[...] o comportamento exato de um faminto é a violência” (ROCHA, 2008); “[...] uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária” (ROCHA, 2008).

Figura 4: Cena de O conto dos contos em que a princesa entrega a cabeça do marido ao pai
Imagem disponível em: <https://tocaoterror.com>

Além disso, a terceira história traz à tona a questão do empoderamento, muito discutida hoje em dia. A princesa finalmente passa por vários estágios, respectivamente: “power within”, “power over” e “power to” (MOSEDALE, 2016), demonstrando que “empowerment is an ongoing process rather than a product” (MOSEDALE, 2016). Por meio de autoconfiança e autoestima, a personagem se sobrepõe à vontade do marido e à ordem do pai, para finalmente conquistar o poder necessário para reassumir sua vida e traçar seu próprio destino. “People are empowered, or disempowered, relative to others or, importantly, relative to themselves at a previous time” (MOSEDALE, 2016). Depois de ter sido “desempoderada”, a princesa decide matar o marido, voltar para seu reino, confrontar o pai e assumir o trono.
 Fim.

Referências:
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
O CONTO dos contos. Direção de Matteo Garrone. Itália, França e Reino Unido: Archimède; Mares Filmes, 2016. 1 DVD (134 min); son.
MOSEDALE, S. Policy arena. Assessing women’s empowerment: Towards a conceptual framework. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/261727075_Mosedale_Assessing_women's_empower
ment>. Acesso em: 10 out. 2016.
PALMERINI, C. Doentes imaginários. Disponível em:
<http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/doentes_imaginarios_imprimir.html>. Acesso em: 26 set. 2014.
ROCHA, G. Uma estética da fome. Disponível em:
<http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_gg_cinenovo.php>. Acesso em: 24 mai. 2008.
SILVA, M. G. da. Literatura e cinema: do sertão à favela. Disponível em:
<http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa10/marianagesteira.html>.  Acesso em: 10  mai. 2008.
TEIXEIRA, J. Maravilhas brutas. Veja, 17 out. 2012, p. 120-123.
TORRES, R. Exclusivo: Matteo Garrone comenta o universo fantástico e violento de O conto dos contos. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-121471/>. Acesso em: 23 mai. 2016.

----------------
* Professora das disciplinas de Imagem e Literatura e Crítica Cultural, no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. Professora de Língua Portuguesa e Dramaturgia no Curso de Graduação de Letras da FAE. 


segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Os monstros são os outros

*Isadora Dutra
As grandes navegações do século XV que inauguram a Idade Moderna impulsionaram o conhecimento geográfico e cartográfico. Mas a viagem já era uma prática presente na vida antiga e medieval tanto para fins comerciais quanto religiosos. A viajem antiga e medieval acontece por via terrestre e também marítima, porém, circunscrita ao espaço mediterrâneo. Além do desenvolvimento da cartografia , a viajem inclusive como topos literário, também repercute sobre o imaginário da época, expresso em diferentes manifestações culturais.
    No contexto medieval, a percepção da fronteira do mundo conhecido remete à intenção, propagada no período, de organização de uma taxonomia dos seres monstruosos que, no imaginário europeu, habitavam o território desconhecido. Geografia, o desconhecido e a presença dos monstros sobre a terra são elementos indissociáveis no imaginário da época: a localização geográfica servia de fundamento para a definição das características dos monstros mencionados nas taxonomias transmitidas por gerações. O pensamento geográfico propôs durante séculos a relação entre caráter, aparência e o lugar destinado a cada ser no mundo. Dessa forma, localização e climatologia eram determinantes na definição da monstruosidade.
      A designação de certos seres como monstros atravessou as eras antiga e medieval referindo, em alguns casos, indivíduos reais pertencentes a culturas diferentes daquela do contexto em que eram criadas as taxonomias. Nesse sentido, o monstro significa a marca da diferença. É o que ocorre, por exemplo, na obra de Homero, em que os seres que divergem da cultura grega são classificados do ponto de vista da monstruosidade. Do mesmo modo, a visão etnocêntrica da cultura europeia, que entendia a si mesma como referencial ordenador do mundo e como superior às demais, criou taxonomias para categorizar o diferente. Além do caráter de etnocentrimo, o significado dos monstros também está associado à questões de ordem teológica, explicando as diferenças entre os homens pelo fator da interferência divina. Pelo viés da teologia, o monstro também expõe a diferença religiosa entre os povos, elemento fundamental na mentalidade medieval e que está presente, por exemplo, na literatura de cavalaria, na qual o monstro gigante desempenha papel importante e representa o outro, culturalmente e religiosamente distinto.
     Por outro lado, as taxonomias de monstros produzidas desde os autores gregos até os medievais incluiam listas de seres fabulosos, que não chegavam a designar uma realidade cultural diversa de fato encontrada pelos viajantes. Duas compreensões em relação aos seres monstruosos podem ser apontadas: uma indica a crença em sua existência real, um entendimento literal dos monstros que, no entanto, perde força a medida que as descobertas de novos territórios e a ampliação dos conhecimentos geográficos não confirmam a sua presença nas regiões longínquas onde, imaginava-se, deveríam habitar, relegados, na mentalidade medieval, ao espaço ainda não explorado. Outro modo de compreensão ainda diz respeito à uma postura filosófica que faz dos monstros um instrumento para pensar o desconhecido, um modo de acessar as questões relativas ao poder divino e ao conhecimento de Deus.
     Os teólogos da igreja católica medieval ocuparam-se em explicar a origem e o significado dos monstros no quadro dos dogmas cristãos, tornando a deformidade um veículo alternativo de questionamento filosófico acerca do ser. Nesse contexto, o monstro alcança um sentido simbólico, destinado a busca de explicações que a perspectiva tradicional dialética só era capaz de revelar de modo incompleto. Esse aspecto filosófico da monstruosidade encontra continuidade no período renascentista, porém, tem presença mais restrita, sendo extinto do pensamento teológico e minimizado no filosófico, tornando-se quase exclusivo ao campo artístico do estilo grotesco.
      Pode ser percebida ainda uma terceira leitura, que diz respeito ao campo da investigação científica, concentrada na avaliação dos nascimentos de indivíduos com deformidades. Os tratados teratológicos surgem como uma tendência que, progressivamente, substitui as taxonomias das raças de monstros (que designavam seres reais ou fabulosos, conforme eram difundidas na Idade Média). Nesse caso, a referência está nos indivíduos de aspecto monstruoso, os quais passam a ser descritos com mais frequência conforme desperta, na Renascença, o interesse pelo corpo humano de modo geral e pelo monstruoso. Nesse caso, a deformação passa a ser interna ao conceito de humanidade, enquanto o monstro fabuloso está no limiar da humanidade.
      O monstro na Renascença sofre transformações de significado e difere do monstro medieval em vários aspectos, ao mesmo tempo em que em certos casos, como no processo de descoberta e sobretudo na posterior colonização do Novo Mundo, reproduz ideias de alteridade associadas à monstruosidade. A figura do monstro presente na literatura antiga indica as diferenças entre povos e também as ameaças da natureza para a vida humana. Na literatura medieval o monstro basicamente representa o outro, enquanto no debate teológico constitui acesso ao universo incompreensível do divino.
      Alteridade e monstruosidade são, portanto, uma associação recorrente na visão de mundo da época. A literatura de cavalaria de modo geral é exemplo do imaginário do monstro que habita o desconhecido e representa uma outra cultura, além da recuperação das taxonomias antigas. Nos romances de cavalaria o monstro aparece na figura do gigante, um representante de uma religião e cultura diferente. O gigante, desproporcionalmente ameaçador em relação ao herói, é o mouro a ser vencido pelo cavaleiro cristão. A sua monstruosidade significa a marca da diferença.
      A tradição textual relativa aos monstros é transmitida para a era medieval, por três vias fundamentais: (1)- os romances do ciclo de Alexandre; (2)- a taxonomia de Plínio e (3)- os textos da Bíblia e os comentários dos teólogos.


KRITZMAN, Lawrence D. Representing the Monster: Cognition, Cripples, and Other Limp Parts in Montaigne's "Des Boyteux". In COHEN, Jeffrey Jerome. Monster Theory: Reading Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.

FRIEDMAN, John Block. The monstrous races in medieval art and thought. Syracuse: Syracuse UP, 2000.

STEPHENS, Walter. Giants in Those Days: Folklore, Ancient History and Nationalism. Lincoln: University of Nebraska Press, 1989.


WILLIAMS, David. Deformed discourse: the function of the monster in mediaeval thought and literature. Montréal: McGill-Queen’s UP, 1996.

*Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Lampião em quadrinhos: Além do bem e do mal

*Luiz Zanotti

Este resumo pretende divulgar o artigo “Lampião em quadrinhos: Além do bem e do mal”, presente na coletânea Assim transitam os textos: ensaios sobre intermidialidade (ainda no prelo) organizada pela Professora Brunilda Reichmann, que analisa a adaptação para as histórias em quadrinhos e romances gráficos da personagem Lampião, um dos heróis brasileiros que teve a sua biografia romanceada, filmada, dramatizada, e, é por muitos, considerado a personagem mais importante em termos do número de obras publicadas no Brasil. Neste sentido, problematizamos os cartoons sobre o sertão do cartunista Henfil, a história em quadrinhos Lampião: ...era o cavalo do tempo atrás da besta da vida (2006), de Klévisson Tupynanquim e o romance gráfico Lampião e Lancelote (2007) de Fernando Vilela. Nestas três obras, será possível verificar como cada autor busca a adaptação desta ilustre figura, seja no seu confronto com a época do autoritarismo (Henfil), seja na apropriação da literatura oral popular, e mais especificamente o cordel, por novas mídias (Tupynanquim), bem como o enfoque da dicotomia bem/mal no Lampião de Vilela. Esta ambivalência está presente na literatura, onde o cangaceiro geralmente é caracterizado ou como um herói ou como um facínora.
Após breve introdução que versa sobre a importância do cangaceiro no cenário nacional, passamos a verificar as adaptações da personagem de Lampião para o desenho, apresentando primeiramente o cartunista, desenhista, jornalista e escritor mineiro, Henrique de Souza Filho, ou Henfil, que tem como principal característica o seu humor ácido, irônico e inteligente e foi um dos principais adversários da ditadura militar instalada no Brasil.
Entre as diversas personagens criadas pelo autor focamos em personagens tais como a Graúna, o Bode Orelana e o Capitão Zeferino, inspirados no sertão/caatinga nordestina, que mediavam a feroz e humorada crítica que  Henfil elaborava contra a ditadura militar.
A seguir, passamos a analisar o trabalho de Klevisson Tupynanquim que revisita o cordel através de seu maior sucesso nos quadrinhos: Lampião: era o cavalo do tempo atrás da besta da vida  estabelecendo um diálogo entre o cordel e os meios de comunicação de massa no contexto do advento de novas tecnologias, como é o caso da internet. Esta história em quadrinhos  foi selecionada pelo Programa Nacional do Livro Didático do Estado de São Paulo, bem como pelo Programa Nacional da Biblioteca Escolar, o que resultou em mais de quarenta mil exemplares distribuídos nas escolas públicas participantes do programa. É importante notar que o cartunista criou desenhos expressivos, tendo o cuidado de escrever todos os textos dos balões “exatamente” como o povo local pronunciava na época.
Enfim, dentro desta diversidade midiática que se apropria da temática lampiônica verificamos o romance gráfico Lampião e Lancelote (2007), de Fernando Vilela, ganhador do premio Bolonha Ragazzi. Este livro trabalhado de uma forma extremamente simbólica já apresenta na capa a contraposição que se seguira por todo o romance entre a predominância da cor prateada para Lancelote e a paisagem medieval inglesa, e a cor dourada para Lampião e o sertão nordestino.
Desta forma, trabalhamos neste estudo com a cor prata com o significado de pureza, inocência, uma consciência pura, além de seu caráter eminentemente  feminino, tendo a imagem da lua e da noite em oposição ao dourado do masculino, do dia e o sol.
Assim, no romance gráfico de Vilela, a Inglaterra (na época Bretanha) medieval e Sir Lancelote aparecem numa cor prateada apontado para o sombrio, para a noite e para o frio, enquanto o sertão nordestino e Lampião são apresentados na cor dourada que domina o sol e o calor.
O interessante deste romance gráfico é que o autor numa perspectiva de aproximar o sertão nordestino à Idade Medieval, proporciona a passagem de Lancelote para a época de Lampião, onde o cavaleiro passa a cavalgar pelo sertão nordestino até o momento em que se defronta com Lampião o que vai acarretar numa grande batalha entre o exército de cavaleiros de Lancelote e os cangaceiros de Lampião que se engalfinham numa mistura de cores entre o prata e o dourado.
Enfim, neste artigo ilustrado pelos desenhos dos artistas, é possível perceber a diversidade disponibilizada pelo processo intermidiatico da transposição da personagem Lampião para os cartoons, tirinhas e romances gráficos, através da variedade de formas com que cada um dos artistas lidou com a personagem, pois enquanto Henfil utilizou a sua ótica para dar voz a uma situação política inadequada, Tupynanquim buscou popularizar o cordel, ao mesmo tempo que, pretende atualizar esta arte através dos novos recursos tecnológicos e Vilela, por sua vez, busca quebrar a visão dicotômica herói-bandido de Lampião.


*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.