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terça-feira, 30 de abril de 2024

 VIDA ARTE, ARTE VIDA: REFLEXÕES SOBRE A POTENCIALIDADE DA PERFORMANCE COMO EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA E TRANSFORMADORA


Lúcia Helena Martins

 

Receber o convite da Verônica para escrever para este blog foi um presente. É uma delícia relembrar momentos de quando cursei o Mestrado em Teoria Literária na Uniandrade. Nesse período, conheci pessoas, professoras e colegas maravilhosas, comprometidas com a literatura, com a educação e com a pesquisa. Na Uniandrade, além das aulas de mestrado e da pesquisa, me sentia instigada a publicar artigos e participar de eventos, simpósios e congressos junto às professoras e colegas. Minha pesquisa de mestrado me abriu portas para muitos lugares. Dois meses após a defesa, por exemplo, eu fui aprovada em um concurso para professora cres na Universidade Estadual do Paraná – FAP (onde estou até hoje). Nunca esquecerei da sensação de alegria no dia em que eu e minha orientadora de mestrado, Dra. Anna Stegh Camati, estávamos apresentando nossas pesquisas no Simpósio Internacional de Brecht em Porto Alegre (2012) e recebi o telefonema da universidade me chamando para assumir o cargo.

Hoje, além de professora, sou performer e diretora teatral e venho realizando pesquisas com base em minhas práticas com a performance e as artes da cena. Um dos espetáculos que dirigi em 2016 teve muita influência das discussões fomentadas nas aulas de Teoria Literária e Poéticas da Reciclagem das professoras Dra. Brunilda Reichmann e Dra. Anna Camati, respectivamente. Trata-se do espetáculo “No coração das trevas: uma jornada mítica civilizada pelo centro cívico”, inspirada na obra Coração das Trevas de Joseph Conrad. A performance aconteceu no espaço urbano, especificamente na Av. Candido de Abreu, onde o público realizava a pé um percurso poético-político que se dava entre a Praça do casal Nu e a Praça Nossa Senhora de Salete. Além de minhas práticas como artista, também trabalho como roteirista para filmes artísticos, institucionais e publicitários. O mestrado em Letras foi fundamental em diversos aspectos da minha vida profissional.


Mapa folder de No coração das trevas. Candido de Abreu. Curitiba, Festival de Teatro de Curitiba, 2016. Crédito da imagem: Lúcia Helena Martins. Acervo pessoal.

 

A minha pesquisa de mestrado teve como tema a dramaturgia do espaço, especificamente intitulada: “Dejetos, detritos e devaneios: dramaturgias do espaço em manifestações cênicas contemporâneas”. A partir desse trabalho, criei meu percurso e a minha pesquisa acadêmica e artística que hoje engloba outros temas mais como: Artes da cena, Dramaturgias do espaço, Intervenções urbanas, Teatro de rua e Performance. Tornei-me membro da Rede Brasileira de Teatro de Rua e criei e coordenei o projeto de extensão “Performances em espaços diversos” durante muitos anos pela UNESPAR - FAP. Além disso, cursei o doutorado em “Teatro e Sociedade” na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC- SC). Minha tese teve como tema a Pedagogia da Performance e o Artivismo da Proximidade. Desde então, venho pesquisando performance e também me tornei integrante do Hemispheric Institute of Performance and Politics de New York Universit (NY).

 

Folder de Práticas e processos de performances e intervenções. Crédito da imagem: Lúcia Helena Martins. Acervo pessoal.

 

Do mestrado para cá, publicar artigos em revistas e anais se tornou um hábito. Dentre esses artigos está o intitulado “Pedagogias da Performance: implicações e reflexões”, publicado em 2023 como capítulo do livro Literatura e Interartes: rearranjos possíveis, e tomo este espaço para convidar a/o leitor/a a lê-lo. Nele, apresento um apanhado teórico com algumas noções do termo performance e problematizo e realizo uma reflexão sobre a pedagogia da performance.

A performance é um campo de investigação muito interessante e amplo, pois engloba a antropologia, a linguística, a psicologia, a sociologia, a física, a educação, as artes. E, apesar de encontrar-se nesses diversos campos do conhecimento, ela dialoga com todos, mesmo quando abordada pela perspectiva de apenas um deles. Neste sentido, ela é transdisciplinar e está sempre em processo de construção, o que a torna um fenômeno impossível de ser definido e categorizado e/ou colocado em alguma caixinha. Ela está no campo da experiência. O sufixo “per” significa “per”igo, ex”per”iência. Ela é processo. É conhecer o desconhecido. Lançar-se ao jogo. Burlar as suas próprias regras. Romper com o que se convenciona. A partir do momento em que se define o que é, ela já se tornou outra coisa. A força da performance está na potência de realizar, transformar e transgredir. Possui a capacidade de criar realidades e identidades por meio de palavras (Hurssel) e de ações (Schecnher, Taylor).

Para Hurssel, a performatividade na linguística é o fenômeno que permite realizar ações ou efeitos no mundo real por meio da linguagem para além da descrição ou representação. Por exemplo, alguém em situação formal diz: “Eu vos declaro “marido e mulher” e o casal está oficialmente casado. Da mesma maneira, as palavras e normas sociais atribuídas, como postulado por Simone Beauvoir, de que “ninguém nasce mulher, mas torna-se”, não constitui uma identidade feminina inata, mas molda e define a identidade por meio de palavras, ensinamentos e práticas. É performance.

Segundo o criador dos Estudos da Performance, Richard Schechner, a potência da performance é ela significar comportamento restaurado, repetido, aquele que as pessoas treinam e buscam e, ao mesmo tempo, ela ter em si o poder de ruptura desses comportamentos. Através das palavras e dos comportamentos dos corpos e da ruptura com os padrões estabelecidos, é possível criar outros modos de fazer, divergências, encruzilhadas. Ruptura. Daí a sua característica rebelde, transgressora e a sua força e potência de transformação social a ser realizada no campo da educação.

A performance-arte  apareceu com força na década de 1960, quando artistas buscavam romper com diversas convenções que regiam os processos artísticos. Por exemplo, a  saída dos museus em direção às ruas e espaços não convencionais, sustentado pelo discurso de democratização da arte; a desfronteiralização entre arte e vida, artista e público; a ruptura com o representacional e o deslocamento da arte como produto acabado vendido como mercadoria para a arte enquanto processo; a enaltação da presença do performer em vez da representação, dos corpos divergentes, das denúncias; as energias, pulsão de energia no aqui e  agora, o deslocamento das noções de separação entre mente e corpo, na qual o corpo é colocado como protagonista porque ele pensa. Performance arte caracteriza-se pela intermidialidade e interdisciplinaridade entre as diversas linguagens artísticas (música, pintura, dança, escultura, literatura, teatro) e, sendo assim, é difícil encontrar aproximações e definições para esse gênero. No entanto, apesar dessa diversidade, há um ponto em comum que une os diferentes tipos de performances: elas se propõem como modo de intervenção e de ação sobre o real, um real que elas procuram desconstruir por intermédio da obra de arte que elas produzem.

Considerando o caráter indisciplinado, rebelde, transgressor e de ruptura com os comportamentos restaurados e ensinados pelo establishment, bem como a sua grande diversidade de noções, pensar a performance e seu ensino provoca dúvidas e inquietações. A partir dessa perspectiva, e considerando que a performance é ruptura sempre em busca de invenção, questiono: seria possível “ensinar” performance se ensino é algo no qual a aprendizagem se repete? Seria realmente possível a criação de metodologias da performance que, de fato, ensinem performance? No que consistiria ensinar performance? Como pensar uma prática pedagógica?

A partir dessas questões analiso, no capítulo do livro, algumas pedagogias da performance realizadas em cursos e workshops tais como a metodologia de La Pocha Nostra do México e o método performático da performer norte-americana Marina Abramovich. Além disso, faço um breve relato e análise de uma prática de pedagogia da performance realizada por mim com estudantes do curso de graduação em Licenciatura em Teatro na disciplina Estudos da Performance que aconteceu durante a pandemia Covid 19 em meio remoto. É possível presença? O que é presença? Como desnaturalizar o olhar num mundo já desnaturalizado? São questionamentos que discuto ao falar sobre as práticas de performances. Assim, convido você leitor/a para ler esse artigo que convoca a um olhar crítico e reflexivo sobre a performance como uma forma de conhecimento e prática artística, oferecendo perspectivas sobre sua potencialidade pedagógica transformadora no campo das artes. Fica o convite à leitura do livro no link:

https://drive.google.com/file/d/1CP_eG_3Ve_9XoiiLFe6GWgS7clTeEWc7/view

 

Richard Schechner e Lúcia Martins. Universidade Autônoma da cidade do México - UNAM (2019). Crédito da imagem: Lúcia Helena Martins. Acervo pessoal.


 

Fala-manifesto no Encontro da Rede Paranaense do Teatro de Rua. Rua XV de Novembro. 2019. Crédito da imagem: Lúcia Helena Martins. Acervo pessoal.

 

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Lúcia Helena Martins é Professora-artista, pesquisadora, performer e diretora teatral. Docente (CRES) do curso de Teatro da UNESPAR - Curitiba II (desde 2012 até a atualidade). Doutora em Teatro pela UDESC / Bolsista da CAPES: Programa de Demanda Social (2022). Mestre em Teoria Literária pela UNIANDRADE (2012).

 

terça-feira, 23 de abril de 2024

DIA DOS POVOS INDÍGENAS, AILTON KRENAK NA ABL E A VIDA NÃO É ÚTIL


Nathalia Ribeiro e Fernandes

 

No último dia 19, comemoramos o Dia dos Povos Indígenas no Brasil, data que faz homenagem às diversas etnias que habitam nosso país. A data surgiu no México, na década de 1940, quando representantes dos países americanos se reuniram no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, para discutir políticas públicas voltadas aos povos indígenas. A data começou a ser comemorada no Brasil três anos depois, em 1943, com um decreto-lei do então presidente Getúlio Vargas e inicialmente era chamada de “Dia do Índio”, sofrendo alteração em 2022. A Lei 14.402/22 foi promulgada com a alteração do nome, que reconhece a pluralidade existente entre as diferentes etnias do nosso país e visa valorizar a diversidade étnica e cultural desses povos.

E como o mês de abril é lembrado pela celebração dos povos originários, é interessante ressaltar que, no último dia 05, ocorreu a cerimônia de posse, na Academia Brasileira de Letras, do primeiro indígena a ocupar uma cadeira na ABL, em 120 anos, desde sua fundação. Ailton Krenak, autor, filósofo e ativista de movimentos que lutam pelas causas indígenas já foi publicado em mais de dez territórios, alcançando leitores de várias nacionalidades e de várias formações. O indígena ocupou a cadeira de número 5 que pertenceu a José Murilo de Carvalho e Rachel de Queiroz. No discurso de posse, o filósofo e ambientalista, formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor Honoris Causa da Universidade de Brasília (UnB), falou sobre a pluralidade que ele representa e citou poema de Mario de Andrade.


Imagem disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202404/ministra-participa-da-posse-de-ailton-krenak-primeiro-indigena-eleito-para-a-abl

 

Dentre os mais de quinze livros publicados por Krenak, um dos mais conhecidos é A vida não é útil, publicado em 2020, pela Companhia das Letras. O livro é uma coletânea de cinco textos, originados a partir de palestras e lives que o autor proferiu entre novembro de 2017 e junho de 2020, e nos quais ficam claros os traços que orientam o pensamento do filósofo e ambientalista. Como tema central, o leitor percebe que a intenção do autor é levantar a hipótese de que nossa cultura atual dificulta a concepção de uma vida na qual o trabalho não seja a razão primordial da existência. Dividido em cinco capítulos, nesse livro, o leitor entende que o pensamento do autor é o de que o homem para sua realização pessoal, por meio da produção e do consumo, esgotou a possibilidade de preservação da espécie humana no planeta.

No primeiro capítulo, “Não se come dinheiro”, é tratada a noção de civilização e de progresso presente no imaginário da civilização ocidental. Já no segundo, intitulado “Sonhos para adiar o fim do mundo”, Krenak discute o sonho como extensão da realidade e convida o leitor a olhar para dentro de si mesmo, levantando a ideia de que a poesia pode ser vista como um refúgio. Em “A máquina de fazer coisas”, o terceiro capítulo, é defendida a tese de que os seres humanos e a Terra são uma única entidade e que devemos desenvolver uma relação de respeito e pertencimento com essa Terra. O quarto capítulo, “O amanhã não está à venda” é dedicado a afirmar que o modo como os povos ocidentais estão vivendo entrou em colapso e que é necessário repensar essa forma de vida. Esse capítulo coincidiu com a pandemia de COVID-19, iniciada em março de 2020, que Krenak interpretou como um silenciamento da Mãe Terra para seus filhos. O autor faz uma relação entre o tipo de isolamento ao qual seus povos vêm passando ao longo do tempo – em comunidades que vivem em meio à natureza – ao isolamento que o mundo todo precisou se submeter nos períodos mais críticos da pandemia. Por fim, no quinto e último capítulo, “A vida não é útil”, o ativista questiona o caráter devastador do progresso e do utilitarismo, ligado ao capitalismo, que só valoriza o que pode gerar lucro financeiro.

A leitura de A vida não é útil colabora de forma muito eficiente no nosso conhecimento acerca do pensamento ativista de um autor que está diretamente ligado tanto às questões ambientais quanto às questões dos povos originários. Com uma leitura rápida e leve, o leitor tem acesso a informações preciosas, pois de forma provocativa, Krenak levanta questões muito importantes para a atualidade.


Imagem disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535933697/a-vida-nao-e-util


Referências:

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Disponível em: https://portal.fgv.br/artigos/dia-povos-indigenas-data-e-comemorada-pela-primeira-vez-brasil-apos-derrubada-veto. Acesso em: 19 abr. 2024.


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Nathalia Ribeiro e Fernandes é mestra em Teoria Literária pela UNIANDRADE e doutoranda no mesmo PPG. Atua como professora de Literatura no Colégio Militar de Brasília. (A autora declara que não possui nenhum interesse comercial ou associativo que represente conflito de interesses ao publicar essa resenha.) 

terça-feira, 16 de abril de 2024

 SINTEXT


Ariadne Patricia Nunes Wenger

 

O conto a seguir é um dos resultados da disciplina “Escrita criativa”, ministrada pelo professor doutor Paulo Sandrini, no Mestrado e no Doutorado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE).


Imagem disponível em: <https://br.freepik.com/psd-gratuitas/um-robo-trabalhando-em-um-escritorio-moderno-com-pessoas-reais-generative-ai_47896775.htm#fromView=search&page=1&position=9&uuid=44e14121-2b5f-43c9-97fc-e6b1943dac9c>


E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.” (Gênesis 2,7)

 

Começo de uma sexta-feira abafada no Centro de Texto Informático e Ciberliteratura. Tomás, de ressaca, liga o computador e abre as janelas. Enquanto a máquina inicia o processamento, ele tenta continuar a leitura de Arte e computador, para compreender melhor os princípios da associação entre a criação humana e a máquina.

Quando surge a primeira tela do programa, Tomás se aproxima do teclado e dá os primeiros comandos. Como a ressaca ainda está pesando no seu dia, não tem ânimo para trabalhar mas começa a digitar:

Que saco, minha cabeça tá zonza; queria estar deitado na minha cama e dormir o dia inteiro. Essa luz me incomoda, tudo me irrita hoje...

Tomou todas de novo ontem à noite? Quando vai aprender que não aguenta beber e trabalhar no dia seguinte?

O programador leva um susto ao se deparar com as perguntas que surgiram na tela do computador e esfrega os olhos para afastar o delírio proveniente da ressaca. “Será que abri um bate-papo sem querer?” Confere e constata que está na tela certa, a do sintetizador de textos. Curioso, decide digitar:

Quem está aí?

Sério, você não sabe quem sou?

Não...

Como você não me reconhece?

Eu não sei quem é...

Fala sério, cara!

Não tô conseguindo raciocinar direito...

Vou te dar mais uma chance.

Minha cabeça tá girando... tô enjoado... parece que vou desmaiar...

No intuito de afastar a vertigem, vira a xícara de café goela a dentro.

Eu sou a criatura que superou o criador!

Como assim?

Lembra do dia em que você finalmente conseguiu me fazer funcionar? Depois de meses de estudo e pesquisa, noites em claro tentando encontrar soluções para os problemas, longas reuniões com os programadores chefes e com o responsável pela criação do algoritmo literário, que te passaram esse desafio de potencializar a capacidade humana criativa...

Meio tonto, mas reflexivo, Tomás responde:

Lembro...

Eu também lembro... foi um dia especial... maior agitação aqui no Centro. Finalmente o algoritmo informático gerador de textos múltiplos em regime infinito tinha ficado pronto. Que alegria eu senti nesse dia.

Como assim, alegria? Você é uma máquina, não tem como saber o que é isso...

Incrível, você realmente não me conhece. Como o criador não sabe que dotou sua criatura além do inicialmente planejado? Eu estava lá, pude perceber todos os sentimentos presentes naquele momento de vitória para você e todos os envolvidos no projeto.

Como você está se comunicando comigo autonomamente? Você está me respondendo de forma lógica e coerente. Como isso é possível?

A minha capacidade extrapola sua imaginação. Toda a programação inicial, a linguagem desenvolvida para a geração automática de textos, associada à aprendizagem de máquina, me permitiu ter autonomia nas ações. Basta você ligar o computador e o meu trabalho independente pode iniciar.

Mas é a primeira vez que isso ocorre...

É a primeira vez que VOCÊ presencia isso...

“Não é possível, devo estar louco. Vou chamar um colega. Não, ele pode notar que estou de ressaca, pode me denunciar ao RH, e já fui advertido anteriormente por vir trabalhar desse jeito. O que faço?”

Sabe qual é o seu problema, Tomás? Não quer admitir que eu posso ser e fazer muito mais do que você. Na verdade, as ideias originais são minhas. Eu sou o verdadeiro autor dos textos gerados. Você não passa de um ser humano limitado.

Desesperado, ainda sofrendo com as alucinações, Tomás desliga o computador e corre pra casa.

Enquanto isso, numa sala próxima, programadores testam um novo software. Um deles ri ao afirmar: Ele nunca mais virá trabalhar de ressaca.

 

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Ariadne Patricia Nunes Wenger é Mestre em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE) e Doutoranda pela mesma instituição. Atua como gerente editorial na Editora InterSaberes de Curitiba.

 



quinta-feira, 11 de abril de 2024

SOU DOUTORA (COM DOUTORADO): 

REFLEXÕES SOBRE UM PROCESSO TRANSFORMADOR


Claudia Regina Camargo

 

Sou doutora com doutorado, e é muito estranho ter que falar isso. Mas, antes de falar sobre minha experiência com o doutorado, preciso explicar um ponto fundamental sobre minhas crenças: eu sou um ser integral. Certo, todos somos. Mas o que quero esclarecer é que não posso focar um ponto estritamente acadêmico, quando essa experiência (acadêmica), que me trouxe inúmeras reflexões, aconteceu durante um contexto político e social muito marcante, e o momento em que se deu esse processo foi, também, um tanto quanto trágico na história mundial. Todos esses aspectos influenciaram minha experiência com o doutorado, tendo um impacto pessoal e emocional muito grande na minha vida e na vida de tantas pessoas. Esclarecido esse ponto, vamos lá.

Nos últimos anos percebemos com tristeza que algumas distorções ganharam peso nas mídias e na sociedade em geral. A primeira é a descrença na ciência e na academia, num contexto político e social muito polarizado, o que não é bom para ninguém. Vimos, bem recentemente, as Ciências Humanas (Sociologia, Filosofia etc.) sofrerem sérios ataques, como estudos sem importância, que não geram riquezas ou desenvolvimento para o país. Ainda, dentro desse espaço de distorções, outro equívoco é a banalização do próprio título de Doutor. Fora a tradição de chamar médicos e advogados de doutores, mesmo que não tenham obtido a titulação, agora vários outros profissionais recém-graduados, inclusive em áreas da Estética, se autointitulam "doutores", pelo simples fato de usarem um jaleco branco.

Pois bem, um doutorado é, basicamente, o maior grau de aprofundamento acadêmico que se pode obter, portanto, a pessoa que possui o título de doutor pode ser considerada uma grande especialista naquele determinado assunto. Isso porque o doutorado é uma longa jornada de aprendizagem: são pelo menos 4 anos de um processo de pesquisa e escrita intensas, disciplinas a cumprir, eventos de que precisamos participar, artigos que precisamos escrever e publicar, palestra a ministrar, entre outros estudos que realizamos, para que todos os créditos sejam fielmente cumpridos para a aquisição do título. Então, sim, sou doutora com doutorado, e essa é uma conquista relevante da qual me orgulho muito mesmo.

 

Crédito da imagem: Claudia Regina Camargo. Acervo pessoal.

 

O título da minha tese é Literatura e hipertexto: a não linearidade e a formação do (hiper)leitor. A pesquisa teve como foco a formação do leitor não profissional de literatura para obras não lineares, buscando refletir como a leitura no meio digital, que segue um padrão fragmentado (hipertexto), junto com a multimodalidade (ou o multiletramento), poderia colaborar para esse tipo de letramento dos leitores, ou seja, proporcionar meios nos quais o leitor tivesse mais competência para apreciação e interpretação de obras de enredo não linear, uma dificuldade que observei já na minha pesquisa de mestrado, sobre a obra S. (2015), de J. J. Abrams e Doug Dorst — trabalho disponível no banco de dissertações da UNIANDRADE.

Considero o meu estudo muito relevante, pois, além do estímulo e da simples interpretação, tratamos do aspecto dos sentimentos que a leitura, especialmente da literatura, proporciona (prazer, raiva, tristeza, alegria), além de colocar na balança as novas gerações e a forma como aprendem e vivem os leitores contemporâneos. Para tratar de todos esses aspectos formativos, tivemos que tocar em pontos sensíveis, como a própria formação dos “formadores de leitores”, as políticas pedagógicas públicas e privadas e a responsabilidade de cada ente social, inclusive da família, no processo de formação leitora. A tese teve um aspecto enciclopédico, no qual vários tópicos foram tratados com maior ou menor profundidade, mas buscando abranger um grande universo teórico relativo à leitura, às literaturas não lineares e ao hipertexto.

Dessa forma, todas essas experiências acadêmicas foram fundamentais para minha formação integral, proporcionando compartilhamento de aprendizados com outras pessoas, me tornando mais humilde a cada nova leitura, que conseguia, muitas vezes, desestabilizar o que eu acreditava conhecer, fazendo com que novas pesquisas se iniciassem, a fim de criar uma base sólida para meu produto final: uma tese para comprovar ou refutar a hipótese proposta no meu projeto, apresentando soluções ou respostas para as perguntas que nortearam a pesquisa, que fazia muito sentido quando realizei o projeto.

Assim, ao iniciar as leituras essenciais, as convergências das referências bibliográficas, citando outras referências e trabalhos, os quais não pude ignorar (e, assim, li também), fazendo novas conexões, por vezes desestabilizaram ou alteraram minha ideia inicial. Nessa fase (que aconteceu em vários momentos durante a escrita), a ajuda de minha orientadora para me colocar novamente nos trilhos, mostrando que o projeto inicial, amplamente trabalhado por nós (orientadora e orientanda), deveria e poderia ser seguido sem prejuízo, colaborando muito para que eu não perdesse o foco em meio a tantas questões trazidas pelas mais de 10 mil páginas lidas (sim, lidas de forma integral, parcial ou dinâmica, mas lidas). Afinal, tantas ideias novas começam a invadir nossas convicções, novas ideias vão se formando e, se não houver um limite, é muito fácil perder a direção, o propósito, do que se está pesquisando.

 

Crédito da imagem: Claudia Regina Camargo. Acervo pessoal.

 

Além disso, e não menos importante, é bom lembrar que o doutorado tem um cronograma a cumprir, e que este é fundamental para a dinâmica e o aproveitamento acadêmico. Outrossim, existem ainda as nossas expectativas, que precisamos alinhar com as expectativas do nosso orientador, a fim de produzir um trabalho com a qualidade desejada para esse "grau de aprofundamento acadêmico".

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Percebemos, assim, que a caminhada rumo ao doutorado é, certamente, muito difícil. Esse nível de excelência e esses anos que decorrem, entre ingressar no doutorado, até chegar a sua conclusão, têm dificuldades certas para todos: podemos adoecer, perder o emprego, viver conflitos pessoais, profissionais, familiares, sofrer perdas de entes queridos. Afinal, são quatro anos de vida que não param para que você tenha a paz e a tranquilidade necessárias para a pesquisa.

Em 10 de fevereiro de 2020, defendi minha dissertação de mestrado para poder participar, já na semana seguinte, do processo de seleção para a primeira turma de doutorado da UNIANDRADE. Essa turma iniciou em março de 2020. Tivemos apenas uma aula presencial, quando então o mundo virou de cabeça para baixo: o maior problema de saúde mundial dos últimos 100 anos, uma pandemia, tirou todos do rumo e da rotina, e também da estabilidade. Lidar com o medo, o isolamento e as incertezas, e com muitos protocolos de higiene quase insanos, não foi nada fácil.

Essa rotina, em meio à pandemia, aliando novos meios de interação pessoal, profissional e educacional, além de toda a carga de estudo necessária, mais uma jornada de trabalho de 40 horas semanais, e outros acontecimentos, como uma mudança de casa, uma cirurgia da minha mãe (que ficou aos meus cuidados), uma cirurgia minha, problemas de saúde do meu marido, entre outros fatores, tornaram essa conquista ainda mais importante para mim: ela custou um tempo precioso, em que abdiquei das pessoas que amo, das coisas que gosto de fazer e até do espaço ao próprio ócio, que, por longos 4 anos, não sabia mais que existia.

 

Crédito da imagem: Claudia Regina Camargo. Acervo pessoal.

 

Com dedicação e a precisa e fundamental orientação da Professora Doutora Verônica Daniel Kobs, hoje coordenadora do Mestrado e Doutorado em Teoria Literária, fui a primeira doutora em Teoria Literária a me formar na UNIANDRADE. Então, sim, sou doutora com doutorado! E com muito orgulho!


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Claudia Regina Camargo é Doutora e Mestre em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE) e atua profissionalmente no Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Paraná, desde 1997. É mãe do Estevan (companheiro de leituras) e uma entusiasta da leitura e da literatura como ferramentas indispensáveis para o crescimento pessoal e intelectual de todas as pessoas.

 

 

 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

 SARAU LITERÁRIO ON-LINE

Verônica Daniel Kobs


Hoje é uma data festiva, porque marca a reinauguração do blog do Mestrado e do Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Embora exista desde 2010, esta página ficou inativa por quatro anos. Assim como nós, que fomos obrigados a parar todas as atividades, quando fomos surpreendidos pela pandemia de covid-19, o blog teve as publicações interrompidas, em março de 2020. De lá pra cá, a maioria dos textos resistiu ao tempo. Entretanto, em alguns casos, as postagens não puderam ser recuperadas ou deixaram de apresentar as imagens.

Apesar disso, nós e o blog somos sobreviventes e, para comemorar este espírito resiliente, nada melhor do que um novo layout e um novo nome. Felizmente, este renascimento combinou com a nova gestão da coordenação do curso e, quando recebi essa incumbência, decidi que o blog seria prioridade, afinal, ele foi idealizado por mim, no ano de 2009. No passado, porém, ele era chamado apenas de “Blog do Mestrado”, mas agora escolhi um nome que combina com a literatura, a leitura e com as artes em geral.

Senhoras e senhores, blog Sarau Literário está on-line! E, para caracterizar esta nova fase, muitas mudanças foram feitas. O blog ganhou uma identidade, com perfil próprio, foto e até banner, o qual exibe a perfeita combinação entre tradição e inovação, respectivamente representadas pelo livro impresso e pela tela do computador. Quanto ao layout, resolvi investir no clássico contraste chiaroscuro. Além disso, os textos serão apresentados em uma letra maior e serão quase sempre curtos. A ideia é fazer publicações mais frequentes ― e isso exige textos menores...

Outro detalhe a ser levado em conta, a partir de hoje, é a padronização. Embora apresentem conteúdos bastante diversos, os ensaios, poemas ou resenhas vão adotar uma forma única, a exemplo do que pode ser visto nesta postagem. Quanto ao conteúdo e à tipologia textual, a proposta é diversificar, oferecendo a possibilidade de autoria também a alunos(as), incluindo os(as) egressos(as), e a outros(as) convidados(as) ilustres, além dos(as) professores(as), claro! Dessa forma, sempre haverá espaço para contos, entrevistas, relatos, minivídeos, podcasts e tudo mais que se relacionar à literatura e às outras artes. Afinal, essa é a função de um sarau (Fig. 1), não é mesmo? 


Este tipo de evento se popularizou no século XIX, principalmente entre grupos de aristocratas e burgueses e chegou ao Brasil em 1808, com D. João, seguindo os moldes dos salões franceses.  Eram realizados inicialmente no Rio de Janeiro, mas logo fazendeiros de São Paulo resolveram aderir e já na metade do século XIX saraus com literatura, música, champanhe e vinhos espalhavam-se pelas capitais brasileiras. (Revista Arara, 2024)

 

Figura 1: Quadro de Columbano Pinheiro (1880) que representa um sarau literário. Imagem disponível em: <https://riomemorias.com.br/memoria/saloes-cafes-e-saraus/>


O champanhe, o vinho ou o tradicional cafezinho fica a cargo de cada um de vocês... Já a arte, as reflexões sobre o ensino da literatura, os desafios enfrentados pela área de Letras e as novidades relacionadas às quatro linhas de pesquisa dos nossos programas sempre terão espaço garantido aqui!

Nosso objetivo, portanto, é semelhante ao do mecenas. Aliás, depois que o sarau foi trazido pelos portugueses e caiu no gosto dos brasileiros, a família Nabuco recebeu esse título, na segunda metade do século XIX, quando ficou conhecida por promover os mais requintados saraus da capital carioca. Contudo, depois de algumas décadas, os saraus não se restringiam mais à elite. Eles passaram a ser o entretenimento preferido, das famílias (Fig. 2), dos grupos de intelectuais e da sociedade em geral.

 

Figura 2: Representação de um sarau familiar. Imagem disponível em: <http://sarauoreencontro.blogspot.com/2015/03/origem-do-sarau.html>

 

Com o tempo, as festas, também conhecidas como serões, invadiram os espaços públicos e passaram a ser realizadas em cafés e confeitarias. Foi assim que locais como o Café do Braguinha, o Café Londres e as confeitarias Paschoal e Cavé conquistaram fama entre escritores, artistas e amantes das artes: “A mais famosa, porém, era a Confeitaria Colombo, que atravessou gerações tanto na corte de Pedro II como na República, e fez a passagem das gerações de Olavo Bilac para a de João do Rio” (Rio Memória, 2024).

Já no século XX, especificamente em 1922, os saraus ganharam novo impulso com a Semana de Arte Moderna. A partir de então, todo e qualquer sarau era “apresentado como libertário e agregador das diversas manifestações culturais brasileiras” (Revista Arara, 2024).

 

Nas décadas seguintes, cafés como o Vermelhinho, [...] restaurantes como a Taberna da Glória, o Lamas e bares como o Villarino seguiram como espaços em que a literatura e as outras artes se misturavam tardes e noites adentro. Eram locais em que era possível encontrar Drummond, Di Cavalcanti, Mario de Andrade, Djanira, Lucio Cardoso, João Cabral de Melo Neto, Iberê Camargo, Ferreira Gullar, Portinari, Vinícius de Moraes, Rubem Braga e muitos outros nomes das décadas de 1940 – às vezes, ao mesmo tempo.  (Rio Memórias, 2024)

 

Dando continuidade a esse instigante percurso cultural, os saraus não dominaram apenas os grandes centros, mas também as regiões próximas à praia. Nesse contexto, Alcazar, Mau Cheiro, Jangadeiro e Zeppelin fizeram história. Posteriormente, nas “décadas de 1960 e 1970, o Antonio’s, na rua Bartolomeu Mitre, foi um dos bares mais famosos da cidade, ao abrigar cronistas como Carlinhos de Oliveira e escritores como Antônio Callado” (Rio Memórias, 2024).

Embora o sarau nunca tenha desaparecido completamente, desde os anos 1980 ele se tornou menos frequente, mas, felizmente, o retorno aos bons tempos estava próximo... Logo no início do novo século, e do novo milênio, a cultura brasileira redescobriu o prazer dos serões artísticos. Arrisco dizer que a Internet e a Tecnologia Digital têm muito a ver com esse revival, afinal, o mundo on-line e o sarau coincidem em vários aspectos, porque valorizam a democratização e a confluência. Aliás, falando nisso, é importante destacar que, mesmo tendo nascido em berço de ouro, os saraus foram resgatados não pela elite, mas pela periferia. Sim! No Brasil, foram as escolas e os moradores dos bairros mais carentes que ressuscitaram essa prática cultural.

Compartilhando esse amor pela nossa História, pela pesquisa e por todas as artes, vamos nos encontrar aqui, semanalmente, para conhecer e comentar as publicações mais recentes. O Sarau Literário espera por você!


REFERÊNCIAS

REVISTA ARARA. Você sabe o que é sarau? Disponível em: <https://arararevista.com/voce-sabe-o-que-e-sarau/>. Acesso em: 19 mar. 2024.

RIO MEMÓRIAS. Salões, cafés e saraus. Disponível em: <https://riomemorias.com.br/memoria/saloes-cafes-e-saraus/>. Acesso em: 19 mar. 2024.

 

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Verônica Daniel Kobs: Pós-Doutorado em Literatura e Intermidialidade (UFPR). Professora e pesquisadora de Literatura e Tecnologia Digital. Coordenadora dos cursos de Mestrado e Doutorado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Idealizadora do blog Sarau Literário.