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terça-feira, 14 de outubro de 2014

EM BUSCA DE RAÍZES GEOGRÁFICAS E ESPIRITUAIS:
O SUJEITO DIASPÓRICO NO SÉCULO XXI.[i]
Mail Marques de Azevedo

As palavras proféticas de W.E.B. Du Bois - “O problema do século XX é o problema da linha da cor” - ressoam ainda mais fortes no século XXI, quando o sujeito diaspórico de pele escura continua na busca de um lugar de pertença, tema dominante na chamada literatura pós-colonial. O lócus do romance de estréia da anglo-jamaicana Zadie Smith, Dentes brancos (2000), é o mundo multicolorido, multirracial e plurilingüístico do distrito londrino de Brent. O conto alegórico “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, de Conceição Evaristo, escritora mineira conhecida pela celebração de suas raízes afro, dá vida a uma comunidade negra mítica que se regenera, após um longo período de esterilidade, com o nascimento de uma criança. As duas narrativas se encontram em um ponto comum: a focalização de personagens diaspóricos de cor, embora em diferentes estágios do processo pós-colonial.
Este trabalho examina na prosa irreverente e humorística de Smith, e no texto poético da escritora brasileira, o papel da literatura como mediação. O termo designa na teoria pós-colonial o papel da literatura como comentário ou defesa de um determinado ponto de vista, bem como de crítica e resistência a problemas decorrentes do processo colonizador europeu: diáspora, deslocamento, perda de identidade, racismo, opressão econômica e desvalorização cultural, que atingem particularmente o homem de cor.
Os termos correlatos pós-colonial, pós-colonialismo, pós-colonialidade, largamente empregados nos meios acadêmicos, sofrem o problema da imprecisão semântica, concretizada já no prefixo “pós”, cuja acepção de “o que vem depois” está em desacordo com o âmbito do campo de estudo, que engloba todo o processo de colonização. A imprecisão se estende ao objeto e aos métodos da crítica e das teorias ditas pós-coloniais.
Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin demonstram no seminal The Empire Writes Back (1989) uma agenda para os estudos pós-coloniais em inglês e definem seu objeto:

Usamos o termo pós-colonial para cobrir toda a cultura afetada pelo processo do imperialismo, do momento da colonização até o dia de hoje. Sugerimos também que é o termo mais apropriado para a nova critica cross-cultural que emergiu nos últimos anos e para o discurso em que se constitui. Neste sentido este livro se ocupa do estado do mundo durante e após o período da dominação do imperialismo europeu e os efeitos nas literaturas contemporâneas. (Ashcroft et al., 1989, p. 2)

Quanto à crítica pós-colonial, igualmente ampla é a definição de Bart Moore-Gilbert que a vê como “conjunto de práticas de leitura mais ou menos distintas (...) voltadas principalmente para a análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou examinam (...) relações de domínio e subordinação” (Apud HUGGAN, 2001, p. 12). Relações essas que “têm raízes na história do moderno colonialismo e imperialismo europeu, mas que são ainda aparentes na era atual do neocolonialismo”. O espaço temporal de séculos é superado apenas pela amplitude espacial do processo imperialista, que abrange a quase totalidade do mundo moderno, se considerarmos seus pólos opostos: o dominador e o dominado.
A seguirmos Moore-Gilbert, justifica-se a inclusão dos textos selecionados para o corpus deste trabalho como objeto da crítica pós-colonial. O imperialismo europeu tomou formas diversas em tempos e locais diferentes, daí a procedência de colocarmos lado a lado textos díspares, para um estudo que vai “além dos pós-colonialismos e dos pós-nacionalismos”.
Não há como discutir que as consequências da opressão imperialista assumem os mesmos aspectos em todos os povos e regiões, em todas as culturas e línguas. A diáspora dos povos africanos – os “imigrantes” involuntários da expansão européia para além-mar – está na base das histórias de vida de Zadie Smith e de Conceição Evaristo, bem como na construção de suas personagens em seus respectivos enclaves étnicos.
No conto alegórico de Evaristo, não há personagens individualizadas, mas um conjunto de traços e qualificações que caracterizam a comunidade como um todo e fazem dela a protagonista da narrativa. Resistente diante do sofrimento, sábia, forte e paciente, a comunidade enfrenta uma crise de esterilidade física da mãe-terra, quando se rompe o ciclo de morte e renascimento que comanda a natureza:

E então deu de faltar tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água, matéria para os nossos pensamentos e sonhos, palavras para as nossas bocas, cantos para as nossas vozes, movimento, dança, desejo para os nossos corpos (. . . ) O milagre da vida deixou de acontecer também, nenhuma criança nascia e, sem a chegada dos pequenos, tudo piorou. (. . . ) agora nenhuma família mais festejava a esperança que renascia no surgimento de sua prole. (EVARISTO, 2005: p. 35; 37)

No significado alegórico do conto está representada a esterilidade da vida do homem negro, que carrega até hoje as marcas da escravidão e da opressão do imperialismo europeu, ainda aparentes na era atual do neocolonialismo. De fato, a problemática da posição do sujeito colonial e pós-colonial, - e nisso os críticos estão de acordo -, é o que mais se aproxima de um tópico prioritário ao qual se poderia subordinar a teoria pós-colonial. Independente da idade, o indivíduo diaspórico olha para o passado a fim de reconhecer o que sobrevive dele no presente: “Os mais velhos, acumulados de tanto sofrimento, olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo  ... (EVARISTO, 2005, p. 36)
Na análise dos textos, a posição do sujeito diaspórico, foco principal deste trabalho, é examinada no relacionamento mais restrito do indivíduo com a ambientação física, psicológica e cultural. Em espectro mais amplo, analisam-se as relações persistentes de desigualdade ─ social, política, econômica ─ no quadro da sociedade multicultural que habita um dos centros irradiadores da cultura branca européia, sob o foco da apropriação da cultura das minorias como representação do “exótico”, cuja valorização estética põe em relevo seu caráter de objeto de curiosidade.
É esse o quadro que se percebe na Willesden Green criada por Zadie Smith para abrigar o mundo multicultural de Dentes brancos, formado por paquistaneses, hindus, chineses, jamaicanos, árabes, cujos destinos vêm desembocar ali, deixando para trás raízes geográficas e espirituais. “What is past is prologue”: a citação de The Tempest, epígrafe do romance evidencia a importância da pré-história das personagens, o legado de suas origens e a questão de como chegaram até o presente, ao mesmo tempo em que fornece o esquema para o desenvolvimento do enredo.
O romance narra a saga de várias gerações que abrange o século vinte, mas atinge as raízes mais remotas do quebra-cabeças cultural de seu background: as personagens vão e vêm entre Bangladesh, Bulgária, Jamaica, Itália e Escandinávia, mas todos se reúnem nas ruas da Londres de Zadie Smith. Envolve três famílias ─ os Joneses, casal misto, ele inglês e ela, jamaicana; os Iqbals, de Bangladesh, e os judeus-católicos, os Chalfens ─, que vivem nas proximidades, e cuja localização geográfica comum se sobrepõe a heranças culturais díspares e liga seus destinos.
Se postulamos que em “Ayoluwa” o papel de protagonista é desempenhado pela comunidade, em Dentes brancos, a função se distribui entre os membros da geração mais jovem dos três grupos familiares, que estabelecem a conexão entre as famílias. A análise do modo característico como enfrentam a complexidade do ambiente multicultural de Willesden Green, que se repete dentro de casa, ilustra um dos temas centrais do romance: o legado do império, a reunião de imigrantes nos velhos centros  imperiais, e a consequente constituição de sociedades multiculturais.
Quer se trate de comunidades afrodescendentes, isoladas fisicamente, no conto de Evaristo, ou multiculturais, perdidas como fragmentos multicoloridos no mosaico de línguas, religiões e manifestações da cultura material desenhado por Zadie Smith na antiga metrópole do Império Britânico, tais grupos partilham os mesmos problemas decorrentes da diáspora iniciada com a expansão marítima do século XVI.
Apesar de inconsistências de definição e de metodologia, é indiscutível que o conjunto dos estudos pós-coloniais — teoria e critica – provou ser uma força catalisadora para algumas das produções intelectuais mais estimulantes do presente. No caso deste trabalho, forneceu importantes parâmetros para a análise de formas culturais que medeiam, desafiam ou examinam relações de domínio e subordinação na natureza do sujeito diaspórico no século XXI.

REFERÊNCIAS
ASHCROFT, B. et al. The Empire Writes Back. Theory and Practice in Post-Colonial Literatures. London and New York: Routledge, 198
EVARISTO, Conceição. ”Ayoluwa, a alegria do nosso povo” In. Cadernos Negros 28. São Paulo: Quilombhoje: Ed. dos Autores, 2005.

MAKARIK, Irena. R. (Ed.) Encyclopedia of Contemporary Literary Theory. Approaches, Scholars,
SMITH, Zadie. White Teeth. New York: Vintage, 2001.
__________. Dentes brancos. Trad. José Antonio Arantes. São Paulo: Cia das Letras, 2003.




[i] Reproduzem-se aqui as páginas iniciais do texto Em busca de raízes geográficas e espirituais: o sujeito diaspórico no século XXI, publicado na coletânea Para além dos nacionalismos e pós-colonialismos, páginas127-148. O texto completo pode ser downloaded no site da HN Editora & Publieditorial, endereço www.editorahn.com.br

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