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quarta-feira, 14 de outubro de 2015

SERIA A ODISSEIA UM FOLHETIM?

Edson Ribeiro da Silva*

O homerólogo Victor Berard escreveu certa vez que a Odisseia tinha sido composta para as mulheres. Mas a Ilíada não, este poema seria para o público masculino.
Na odisseia, há uma espécie de alter-ego de Homero. No banquete no palácio de Alcínoo, um cantor distrai os presentes. Ulisses pede a ele que cante sobre a Guerra de Troia. O cantor é Demódoco, identificado como um cego capaz de emocionar com os relatos que faz das façanhas dos grandes heróis. Homero se identifica nesse poeta, é uma assinatura sua. (Desde que o aceitemos como a tradição o representa.) A emoção também é uma marca do poeta épico. E a Odisseia é um exemplo disso. 
Afinal, quem leu a Ilíada estranha uma certa falta de eventos épicos na Odisseia. A própria natureza de algumas personagens mostra aquelas características que, muito tempo depois, seriam chamadas de “românticas”. Nausícaa é a doce moça que sonha com um casamento. Ela é gentil, prestativa, age como uma heroína de novela antiga. Já a ninfa Calypso é apaixonada, ardente, capaz de colocar todos os seus privilégios em condição menos prioritária que poder ter relações sexuais com o herói. Uma típica vilã, dessas que se suicidam ou matam por amor. Falar das personagens ligadas a Ulisses, então, é constatar aquelas características marcantes nos heróis e adjuvantes românticos: a esposa é fiel e recatada, o filho arrisca a vida para procurar o pai, o trabalhador é caridoso e confiável, a ama-de-leite vê no senhor um filho. Personagens sensíveis, amorosas, fieis; apenas tais qualidades as fazem empunhar armas para ajudar o herói. Sem essa necessidade, estariam tranquilas em suas rotinas.
E a situação tão esperada da luta e da vingança ocorre de forma rápida, basta um canto, dentre os vinte-e-quatro que formam a obra, para que a grande ação épica se dê. E a ajuda da deusa Atena ao tornar o herói invulnerável apressa uma luta que poderia durar mais tempo, gerar mais conflitos. As demais ações épicas, as mais conhecidas da obra, estavam no relato de Ulisses, quatro cantos em que ele se mostra como homem superior, o mesmo capaz das grandes lutas travadas na Ilíada. Nos outros dezenove cantos, predomina o afeto, ou sentimentos recorrentes no folhetim, como a humilhação do homem superior, a identidade oculta daquele que pretende se vingar. Há encontros emocionantes do filho com o pai que não via desde criança, da esposa com o marido que ela supunha falecido, do herói com seu pai já idoso, ou com a mãe morta, no Hades. Os heróis pobres ganham belas recompensas.  E quase todos esses dezenove cantos se apoiam em uma ação de teor afetivo. Reconhecimento precedido por longos suspenses. Por saudades guardadas por anos, pela necessidade de conter a emoção quando se está disfarçado. E pelos folhetinescos “ganchos”, que seguram a ação esperada para que acabe no canto seguinte, como ocorre no encontro de Telêmaco com Ulisses, ou quando pai e filho escondem as armas dos pretendentes. A Odisseia parece ter inventado a estrutura do folhetim, da novela de televisão, milênios antes. 
Seria quase a mesma situação dos folhetinistas do século XIX, ao chamarem de “leitoras” o seu público. A expectativa de que o público feminino quer se emocionar, sobretudo diante de situações que envolvem o amor da mulher, ou os percalços passados por familiares que se amam para que possam viver felizes. Talvez a Odisseia tenha sido composta para um público assim, capaz de chorar como Ulisses ao ouvir os cantos de Demódoco. A afetividade, na Odisseia, domina a maioria dos cantos e das ações das personagens do bem. A personagem boa precisa ser heroica mesmo em uma história de amor.
Seria exagero dizer que o público de Homero já manifestava as características tão comuns ao grande público das narrativas nos séculos XIX e XX?  O velho chavão de que homem gosta de filme de ação e mulher, de drama sentimental?  Diferenças já tão marcantes nos dois poemas homéricos. 



*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.

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