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segunda-feira, 21 de março de 2016

APOCALIPSE ZUMBI COM FINAL FELIZ

Verônica Daniel Kobs*


            Lançado em 2013, o filme Meu namorado é um zumbi, dirigido por Jonathan Levine, oferece nova perspectiva sobre o apocalipse zumbi, sobre a sociedade atual e sobre a humanidade. A história se passa principalmente em um aeroporto, cenário que privilegia características e conceitos fundamentais, quando o assunto é globalização. Segundo Stuart Hall (2001), o aeroporto é um “espaço neutro”, um não-lugar, que privilegia o trânsito, o híbrido e a dissolução das fronteiras. E é justamente nesse espaço de inter-relações que os conflitos, no filme de Levine, estabelecem-se entre três grupos: humanos, zumbis e esqueléticos. Além disso, o aeroporto, por ser localizado em região afastada do centro, facilita a divisão da cidade por um muro que separa os zumbis e esqueléticos dos humanos. Enquanto as pessoas permanecem no centro, as criaturas que as ameaçam ficam nas regiões mais distantes.
Inicialmente, como costuma ocorrer em todas as histórias de zumbis, o conflito mostra os humanos sendo perseguidos, atacados e às vezes devorados pelos zumbis. Seguindo o protocolo, o filme dá ênfase aos zumbis como oponentes dos vivos e à condição monstruosa (hipnótica e violenta) dessas criaturas. Entretanto, o zumbi protagonista se apaixona por uma de suas vítimas, uma garota que ele persegue, após comer o cérebro do namorado dela. A partir desse momento, ele passa a protegê-la e a monstruosidade zumbi passa a ser relativizada. Isso ganha maior intensidade quando os esqueléticos são apresentados na história: eles são um tipo mais desenvolvido de zumbis, que têm ímpetos mais violentos e aparência mais aterradora, diferenciando-se muito dos humanos. Em resumo, os esqueléticos são os zumbis que “desistiram” (MEU NAMORADO, 2013) e escolheram a morte em vez da vida. Os zumbis se opõem a eles porque ainda não sucumbiram à morte, de fato. Em razão disso, são mortos-vivos, literalmente, condição que os permite transitar pelos dois mundos e apresentar características relacionadas tanto à vida quanto à morte.
Ao se apaixonar pela garota, o protagonista ultrapassa a fronteira e dá um passo em direção à vida, aproximando-se mais dos humanos e distanciando-se dos esqueléticos. O amor faz com que ele substitua o instinto de devorar pelo desejo de proteger. Aliado a isso, em vez de simples grunhidos, ele tenta articular algumas poucas palavras, mesmo com dificuldades e muitas pausas. Do mesmo modo, a capacidade de sonhar (que ele havia perdido, quando foi transformado em zumbi) retorna, por meio de flashes das lembranças do ex-namorado da garota, como se, depois de devorar o cérebro da vítima, o zumbi pudesse se apropriar não apenas da parte física (miolos), mas também da psicológica (emoções e lembranças).


Cena em que a garota percebe o lado “humano” do zumbi protagonista, após compará-lo com um zumbi tradicional, dos clássicos filmes de terror.

Esse processo de humanização do protagonista, no entanto, é interrompido pelos outros zumbis, que reagem negativamente, quando descobrem a garota e o namoro, mas logo são levados a perceber que o amor é uma espécie de antídoto para a condição deles. Depois disso, enquanto eles buscam suas vidas de volta, tentando se humanizar novamente, os esqueléticos buscam a morte e, por isso, tentam garantir que a garota também se transforme em zumbi. Só assim haveria novas criaturas como eles, no futuro. Mas a escolha entre vida e morte não depende dos esqueléticos. Os zumbis querem viver, escolhem aceitar a garota e essa decisão devolve a eles, aos poucos, as qualidades humanas que eles há tempos não experimentavam: o sono, a saudade e a capacidade de sonhar.
O próximo passo para a mudança é dado pelos humanos. Na hora do confronto final, em que ambos os lados deveriam lutar para exterminar o inimigo, a garota consegue provar que as criaturas podem se regenerar. Humanos e zumbis se unem e conseguem “exumar o mundo” (MEU NAMORADO, 2013), no sentido literal de “tirá-lo da sepultura” (EXUMAR, s. n.), para metaforicamente trazê-lo novamente à vida. Diante disso, os esqueléticos são extintos e o muro, que antes separava humanos e zumbis, é derrubado. Além disso, os zumbis voltam à vida, com sequelas, mas que podem ser revertidas com o tempo e com a ajuda dos humanos.
Quinze anos depois da virada do século e do atentado terrorista às torres gêmeas, em Nova Iorque, fato que, de acordo com vários estudiosos, desencadeou a retomada do gótico, dos zumbis e de outras criaturas relacionadas às narrativas de horror, Meu namorado é um zumbi nega o extermínio, diz não à luta e faz uma contundente conclamação ao amor e à união. Nesse sentido, ele se aproxima do ideal de outro filme recente: Todo mundo quase morto (2014). Porém, o longa de Jonathan Levine corre o risco de passar despercebido para aqueles espectadores acostumados às produções mais típicas do gênero, pois nele não há aquela sucessão de conflitos, nem as cenas de extermínio que fazem de The walking dead uma das séries mais vistas de todos os tempos. Além disso, o muro, que isola e opõe grupos e até cidades inteiras na maioria das produções contemporâneas, a exemplo de Under the dome, Wayward Pines, Once upon a time, Colony e da série Divergente, é destruído ao final.
O fato é que essas diferenças não são aleatórias e justamente por isso devem ser enfatizadas. Essa nova perspectiva que o filme Meu namorado é um zumbi oferece nos obriga a contrariar pressupostos de autores importantes, como Bauman, por exemplo, que, a respeito da influência da globalização na sociedade contemporânea, chega a afirmar: “A globalização parece ter mais sucesso em aumentar o vigor da inimizade e da luta intercomunal do que em promover a coexistência pacífica das comunidades” (BAUMAN, 2001, p. 219). No filme de Levine não é isso que ocorre, já que humanos e zumbis descobrem um modo de conviver pacificamente. Essa visão, otimista e nostálgica, tanto do mundo quanto da humanidade, inverte a competição e o individualismo que Bauman enfatiza em seus textos. Sendo assim, no longa, a alteridade adquire um aspecto positivo: o outro deixa de ser ameaça e passa a ser o único modo de garantir que o mundo se restabeleça.
Muitos autores mencionam, hoje, a importância dos zumbis como um “vazio simbólico” (LEVERETTE, 2008; MOREMAN; RUSHTON, 2011). O diretor Jonathan Levine reconhece esse vazio, mas propõe preenchê-lo de outro modo, exaltando o amor e a união entre as pessoas e contradizendo a tese mais difundida sobre o vírus zumbi, segundo a qual os mortos-vivos resultam de uma espécie de mutação e evolução do vírus da raiva (NATIONAL GEOGRAPHIC, 2014). O filme, então, não apenas rejeita a lógica interna das narrativas que se inserem no novo gótico. Ele a ironiza, redimensiona a relação entre humanos e zumbis e assim consegue reverter os efeitos do apocalipse.


O zumbi protagonista e a namorada: juntos contra os esqueléticos e pela paz entre humanos e zumbis

Meu namorado é um zumbi não perpetua os estereótipos que se acumulam a cada representação do dia do Juízo Final. No filme, não há sinais do tão anunciado “fim dos tempos”. Diante disso, as questões inevitáveis são: Do que se trata então? Foi o mundo que mudou? Ou fomos nós, que desejamos mudar as coisas, após termos percebido que passamos a encarar o outro como simples inimigo, que deve ser morto, para que possamos sobreviver? Seja qual for a resposta, o dia Z se aproxima, mas existe salvação: “E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles (...); e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor (...)” (Apocalipse 21. 3, 4).

Referências:
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BÍBLIA. Português. O novo testamento de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Edição revista e corrigida. Curitiba: Os gideões internacionais, 1983.
EXUMAR. In: HOLANDA, A. B. de. Novo Aurélio Século XXI. Nova Fronteira, [s. l.: s. n.]. 1 CD-ROM.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LEVERETTE, M. et al. Zombie culture: autopsies of the living dead. Plymouth: Scarecrow Press, 2008.
MEU NAMORADO é um zumbi. Direção de Jonathan Levine. EUA: Make Movies, Mandeville Films e Summit Entertainment; Paris Filmes, 2013. 1 dvd (97 min); son.
MOREMAN, C. M.; RUSHTON, C. J. (Eds.). Zombies are us: essays on the humanity of the Walking Dead. Jefferson: McFarland & Company, 2011.
NATIONAL GEOGRAPHIC. A verdade sobre os zumbis. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=
-wDIgAuDw18>. Acesso em: 22 ago. 2014.

* Professora das disciplinas de Imagem e Literatura e Teoria e Estudos Literários, no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. Professora de Língua Portuguesa e Dramaturgia no Curso de Graduação de Letras da FAE. 

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