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terça-feira, 28 de junho de 2016

A POESIA DE TRANSIÇÃO DO SÉCULO XIX PARA O XX: OLAVO BILAC E AUGUSTO DOS ANJOS

Otto Leopoldo Winck*
Na periferia do capitalismo, ourivesaria e paroxismo

            Em 1880 o Brasil era uma monarquia (a única na América Latina), escravagista (a última nação do continente a alforriar os escravos), com uma população, basicamente rural, de cerca de dez milhões de habitantes. O romantismo, dominante até algumas décadas atrás, agonizava, acossado por uma poesia que se pretendia científica, socialistas e realista. Uma geração depois, em 1920, o país já contava com uma população de 30 milhões, era uma república consolidada, não obstante instável. A industrialização, ainda que incipiente, ao lado de uma nova burguesia, produzia os primeiros proletários. Na elite dirigente, reinava o positivismo, o qual, de doutrina que pretendia combater a ignorância e a superstição, transplantado para os trópicos, assumia curiosos ares de culto religioso. Ao mesmo tempo, os imigrantes europeus traziam para cá as novas ideias do anarquismo e do marxismo. Na literatura, realismo, naturalismo, parnasianismo e simbolismo, muitas vezes imbricados e sem mais a pujança inicial, já ostentavam um rol considerável de realizações, enquanto aquilo que viria a ser conhecido como modernismo ainda não dera o ar da sua graça, como o faria de maneira ruidosa em 1922, na Semana de Arte Moderna – curiosamente no mesmo ano da fundação do Partido Comunista. A imigração mudara profundamente o perfil da demografia brasileira, “branqueando a raça”, enquanto os ex-escravos e seus descendentes, preteridos como mão-de-obra assalariada, engrossavam os cortiços nos morros e nos subúrbios das grandes cidades que pontuavam num país de feições ainda agrárias. Com efeito, não obstante algumas mudanças políticas e econômicas, o Brasil continuava um país de inserção subalterna no capitalismo global, pagando um pesado óbolo por sua herança colonial. O Rio de Janeiro exemplificava de maneira sintomática essas contradições. No começo do século a capital federal, inspirando-se na reurbanização de Paris, passava por uma profunda reforma, com a abertura de amplas avenidas, túneis e uma maquiagem no antigo centro. Os ambientes saneados e urbanizados, nos quais são combatidos os focos de epidemias como a febre amarela e a varíola, contrastavam com os morros e áreas periféricas, para onde era impelida a população pobre residente na região central. Com essa situação, crescia a delinquência, aumentando o número de delitos de toda ordem. Ao mesmo tempo, nas livrarias e cafés das áreas nobres, agitava-se toda uma fauna de boêmios e literatos, do sofisticado João do Rio ao marginal Lima Barreto. É a Belle Époque carioca, cenário onde circulava a alegre intelligentsia tupiniquim, antes da irrupção,  por conta do modernismo, de uma nova geração de artistas e intelectuais baseados em São Paulo. Na poesia desse período, dois poetas podem ser convocados para exemplificar o espírito da época: o parnasiano Olavo Bilac e o “simbolista” Augusto dos Anjos.


O Príncipe dos Poetas

Juntamente com Alberto de Oliveira (1857-1937) e Raimundo Correa (1859-1911), Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), cujo nome já é um alexandrino perfeito, forma a famosa “trindade parnasiana”. Nascido como reação aos excessos da subjetividade romântica e ao seu famigerado desleixo formal, o parnasianismo chega ao Brasil por influxo direto de seu similar francês. O vate se transforma em joalheiro, o vidente em ourives. Em vez da inspiração, o lavor; no lugar do sestro, a perícia técnica. O modelo ideal são as artes visuais, em especial a escultura. O culto da forma, não raro confundido com fôrma (como disse Manuel Bandeira), a arte pela arte, a impassibilidade são erigidas em virtude, como no ideal clássico, e toda a temática da Antiguidade volta à tona, com sua carga alienígena de deuses e heróis greco-romanos. Num país de não-leitores, os poetas parnasianos alcançam invejável glória, sobretudo a supracitada trindade, da qual destaca-se, em evidente primazia, o primeiro príncipe dos poetas brasileiros, Olavo Bilac.
Jornalista, polígrafo, inspetor de ensino, Bilac talvez seja o representante mais típico de nossos triunfantes literatos da Belle Époque – sem dúvida o poeta mais popular de sua época. Contrariando o conselho que deu em “A um poeta”, não fugiu “do estéril turbilhão da rua”, mas antes envolveu-se em intensa atividade política: defendeu a Abolição e a República, engajou-se na oposição a Floriano Peixoto, na campanha pelas reformas urbanas,  na defesa da instrução primária, e, no fim da vida, na propaganda pelo serviço militar.
Já no intróito de seu livro de estreia, Poesias (1988), o poema “Profissão de fé” é um exemplo do ideário parnasiano, felizmente nem sempre seguido à risca pelo poeta: “Torce, aprimora, alteia, lima / A frase; e, enfim, / No verso de ouro engasta a rima, / Como um rubim.” Das três partes constitutivas do livro, a primeira é a que mais se identifoca com o ideal parnasiano – na escolha dos temas, na ênfase descritivista, no caprichado refinamento, na chave de ouro dos sonetos. Sobretudo, é na segunda parte, Via Láctea, que se revela outro veio do poeta, o que o salva dos excessos da rigidez da escola. Aí se percebe a influência do lirismo da matriz portuguesa, sobretudo Bocage, e um sensualismo de inspiração epicurista. Mas é sobretudo no livro Tarde, publicado postumamente em 1919, que esse lirismo logra ás vezes libertar-se da camisa de força parnasiana e, envolto num doce clima crepuscular, atingir alguns altos vôos poéticos.
Devido a tendência parricida das novas gerações, Olavo Bilac foi um dos alvos preferenciais dos modernistas, o que turvou durante muito tempo sua correta apreciação pela crítica. Todavia, nos últimos decênios, sua obra vem sendo aos poucos revalorizada, não apenas seus poemas “oficiais” como também sua atividade na imprensa, sobretudo as crônicas e os poemas de circunstância.


Poesia agônica

Se Olavo Bilac, salvo em alguns momentos, é um representante típico do parnasianismo, o mesmo não se pode falar de Augusto dos Anjos (1884-1914) com respeito ao simbolismo. É claro que não é apenas sob o ponto de vista cronológico que o poeta paraibano é aproximado ao simbolismo, pois este não é tanto posterior ao parnasianismo como muitas vezes concomitante a ele. Entre Augusto dos Anjos e a escola do Símbolo, não apenas alguns temas mas a sensibilidade os aproxima. No entanto, se o simbolismo, ao contrário da visualidade do parnasianismo, preferiu o encantamento da música, esta soa de modo estridente e dissonante em Augusto dos Anjos. Ao contrário da surdina verlaineana de um Alphonsus de Guimaraens, os acordes do autor de Eu, lançado em 1912, causam estranheza por sua aguda dissonância. Todavia, junto ao poeta de Mariana e Cruz e Souza, uma vocação para a marginalidade e para a melancolia os une. Ademais, ao contrário dos aplausos da trindade parnasiana, esta tríade “simbolista” não conheceu a fama, não gozou de prestígio literário. Contudo, ainda que membro inconteste desse trio, só podemos denominar Augusto dos Anjos como simbolista com aspas de protesto. Ao contrário dos outros, nele não encontramos a fuga para a Torre de Marfim do Parnaso ou do Símbolo, mas sim um amargo mergulho na sordidez da realidade, com fortes cores escatológicas. Em vez do evanescente, a dura materialidade expressa não raro com “antipoéticos” termos científicos. Em vez do sonho, o pesadelo do prosaico. Em vista dessas particularidades, alguns críticos denominam Augusto dos Anjos como pós-simbolista, outros, como ferreira Gullar, como pré-moderno, embora esses termos nos pareçam demasiado imprecisos. Há ainda quem vislumbre nele traços expressionistas, aproximando-o ao poeta alemão Trakl. De toda forma, Augusto dos Anjos pertence a esta geração na qual o simbolismo, em todas as suas vertentes, preparou o terreno para a irrupção da poesia moderna.
Ao contrário de Bilac, célebre em vida e atacado depois de morto, Augusto dos Anjos, que em vida não encontrou mais que ostracismo, conquistou uma grande popularidade póstuma. Seu livro, o único publicado em vida, vem recebendo seguidas reedições, superando em muito o número de leitores do colega parnasiano.


Referências bibliográficas

ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
BILAC, Olavo. Poesias: Panóplias, Via-Láctea, Sarças de fogo, Alma inquieta, As viagens, o caçador de esmeraldas, tarde. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 41 ed. São Paulo: Cultrix, 1998.
BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de janeiro: G. Ermakoff, 2007.
CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5. ed. São Paulo: USP/Itatiaia, 1975.
GIL, Fernando Cerisara. Do encantamento à apostasia: a poesia brasileira de 1880-1919. Curitina: Editora UFPR, 2006.
HELENA, Lúcia. A cosmo-gonia de Augusto dos Anjos. Rio de janeiro: Tempo brasileiro, 1977.

SIMÕES JUNIOR, Álvaro santos. A sátira do parnaso: estudo da poesia satírica de Olavo Bilac de 1984 a 1904. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

*Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade

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