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quinta-feira, 8 de junho de 2017

BREVES ANOTAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE ÉCFRASE



*Dr.ª Anna Stegh Camati

 

A comparação entre a poesia e a pintura insere-se em uma longa tradição que, segundo Platão, remonta a Simônides de Ceos (556 a.C. – 468 a.C.). A famosa frase atribuída ao poeta grego   “A pintura é uma poesia silenciosa e a poesia é uma pintura que fala” – constitui uma das primeiras reflexões sobre as relações entre a palavra e imagem.  A partir dessa perspectiva, Horácio (65 a.C. – 8 a.C), em sua Epístola aos Pisãos, atribui maior importância às impressões visuais que seriam mais marcantes do que as auditivas. O mote de Horácio, “Um poema é como uma pintura”, retomado pelos teóricos da Renascença, está na origem da doutrina do Ut pictura poesis. Na proposição de Horácio – “Um poema existe tal como um quadro” (Ut pictura poesis erit) – a pintura constitui o referencial de comparação, sugerindo, assim, a superioridade da imagem sobre a linguagem. Os teóricos renascentistas inverteram o sentido dessa proposta: a poesia passou a ser o referencial e a pintura o termo comparado, submetendo a pintura às artes da linguagem (LICHTENSTEIN, 2005).

A mudança de entendimento da máxima  de Horácio – “A pintura é como um poema” (Ut poesis pictura) – modificou o estatuto da pintura, conferindo-lhe a mesma finalidade que Aristóteles atribuía à poesia dramática, ou seja, de contar uma história. A partir de então, a pintura e a poesia, apesar das rivalidades, foram chamadas de “artes irmãs”: “Os pintores tomariam seus temas da literatura, transformando a narrativa em quadros, e os escritores celebrariam os pintores em seus textos revelando a significação, por vezes obscura, dessas telas” (LICHTENSTEIN, 2005, p. 13).

A controvérsia sobre a superioridade da linguagem ou da imagem, resumida acima, foi retomada, sob diferentes perspectivas, por Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) que, em Laokoön, ou: sobre as fronteiras da pintura e da poesia (1766), investigou as relações entre a literatura e a pintura, tomando como base a midialidade. A teoria de Lessing, que ressalta a espacialidade da pintura e a temporalidade da literatura, representou um avanço teórico e lançou luz sobre aspectos que integram os estudos de intermidialidade. Sua visão de que toda arte se configura de acordo com sua midialidade específica mostrou que a materialidade ou os suportes físicos são determinantes no momento da criação, resultando em diferentes modalidades expressivas que podem (ou não) produzir o mesmo efeito (MOSER, 2006).

O termo écfrase apareceu, pela primeira vez, nos escritos atribuídos a Dionísio de Halicarnasso (c. 60 a.C. – c. 7 a.C.), tornando-se, em seguida, uma prática discursiva utilizada nas escolas. Segundo Peter Wagner, trata-se de um recurso retórico antigo que está sendo retomado e redefinido por críticos contemporâneos. O vocábulo, formado pelo prefixo “ek” ou “ec”, que significa “originário de” ou “dentre”,  e a raiz phrasis,  um sinônimo do grego lexis ou hermeneia e do latim dictio e elocutio,  originariamente significava “uma descrição completa e vívida” (WAGNER, 1996).

A definição restritiva de écfrase, que nasceu sob os auspícios do Ut pictura poesis de Horácio, passou por revisões radicais na contemporaneidade. No ensaio intitulado “Ekphrasis Reconsidered: On Verbal Representations of Non-Verbal Texts” (2009),  Claus Clüver criticou o conceito de écfrase de James Heffernan (1993) – “representação verbal de uma representação visual” – por exluir descrições ecfrásticas de pinturas e esculturas não representacionais e de complexos arquitetônicos. No referido artigo, Clüver amplia as fronteiras dessa prática discursiva ao formular a seguinte definição: “Écfrase é a representação verbal de um texto real ou fictício composto em sistemas de signos não verbais” (2009).

No livro Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film (2008), Laura M. Sager Eidt investiga o tratamento ecfrástico ao qual são submetidos quadros de diversos pintores em textos narrativos e fílmicos. Ela afirma que, enquanto a tradição restringia a écfrase a poemas que descrevem ou analisam obras de arte, na atualidade esse termo é aceito e se aplica a todos os gêneros literários, tais como, o romance, o drama e o ensaio, estendendo-se, também, ao cinema e à música (EIDT, 2008). Dentre os críticos que alargaram o âmbito da écfrase, além de Claus Clüver, Eidt cita Tamar Yacobi  e Siglind Bruhn. Ela argumenta que Yacobi, em “Verbal Frames and Ekphrastic Figuration” (1997) e em “The Ekphrastic Model: Forms and Functions (1998), demonstra que a écfrase pode ser constituída por uma breve alusão a um “modelo ecfrástico” ou “simile ecfrástica”,  e que esse referente, da mesma forma que a alusão literária, é um mecanismo capaz de ativar o texto pictural como um todo, produzindo múltiplas conexões e sentidos (EIDT, 2008). Acrescenta, ainda, que no ensaio “A Concert of Paintings: ‘Musical Ekphrasis’ in the Twentieth Century” (2001), Siglind Bruhn introduz perspectivas ainda mais radicais do que as encontradas  na reconsideração do conceito por Clüver e Yacobi  ao postular que, em relação à “écfrase musical”, a mídia recriadora pode ser qualquer outra forma artística ou midiática diferente daquela em que o texto-fonte foi plasmado, não necessitando ser verbal (EIDT, 2008).
Em seu artigo mais recente, intitulado “A New Look at an Old Topic: Ekphrasis Revisited” (2017),  Claus Clüver apresenta ao leitor uma visão abrangente sobre a poesia ecfrástica e seus desdobramentos na contemporaneidade. Argumenta que a definição restritiva de écfrase, a qual Heffernan continuou defendendo em seu artigo “Ekphrasis: Theory” (2015), tornou-se ainda mais inviável em face de novas tendências surgidas nas artes plásticas nos séculos XX e XXI. No referido artigo, Clüver também faz restrições à sua própria definição formulada em 2009, principalmente no que diz respeito a textos “compostos em sistemas de signos não verbais”.  O crítico acredita que essa colocação, inclusiva demais, oportunizou o uso do termo éfrase para representações de configurações em qualquer mídia que emprega sistemas de signos e códigos diversos, como a música, a dança, a pantomima, as artes performáticas, o cinema e outras, tornando o conceito impreciso. Assim, em sua revisão crítica de 2017, Clüver oferece uma visão atualizada das práticas discursivas ecfrásticas em geral, ressaltando que “a écfrase crítica contemporânea e o discurso circundante se voltaram contra o modelo de um paragone baseado na representação”. Além disso, sustenta que “a visão dominante que considera a écfrase um exemplo primário de transposi­ção intermidiática é questionável e deveria ser substituída pelo reconhecimento de que ela verbaliza, primeiramente, o encontro de um espectador com configu­rações visuais não cinéticas” (CLÜVER, 2017, p. 42).


Referências


ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: Ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006.
 

BRUHN, Siglind. A Concert of Painting: “Musical Ekphrasis” in the Twentieth Century. 2001. Disponível em: <http://www.eunomios.org/contrib/bruhn1/bruhn1.html> Acesso em: 20 jun. 2013.
 

CLÜVER, Claus. A New Look at an Old Topic: Ekphrasis Revisited. Todas as Letras, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 30-44, jan./abr. 2017.
 

_____. Da transposição intersemiótica. In: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: Ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006, p. 107-166.
 

_____. Ekphrasis Reconsidered: On Verbal Representation of Non-Verbal Texts. In: LAGERROTH, Ulla-Britta; LUND, Hans, HEDLING, Erik (orgs.). Interart Poetics: Essays on the Interrelations of the Arts and Media. Amsterdam and London: Rodopi, 1997, p. 19-33.

EIDT, Laura M. Sager. Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film. Amsterdam and New York, Rodopi, 2008.

HEFFERNAN, James. Ekphrasis: Theory. In: RIPPL, G. (Org.). Handbook of Intermediality: Literature – Image – Sound – Music. Handbooks of English and American Studies. Berlin; Boston: De Gruyter, 2015. v. 1, p. 35-49.

_____. Museum of Words: The Poetics of Ekphrasis from Homer to Ashbery. Chicago: The University of Chicago Press, 1993.

LICHTENSTEIN, Jacqueline. O paralelo das artes. In: ___. (org.) A pintura – O paralelo entre as artes. Vol. 7. Coordenação da trad. Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 9-16.

MOSER, Walter. As relações entre as artes: Por uma arqueologia da intermidialidade. AletriA: Revista de estudos de literatura, Belo Horizonte, v. 6, 1998-1999, p. 42-65.

YACOBI, Tamar. Verbal Frames and Ekphrastic Figuration. In: LAGERROTH, Ulla-Britta; LUND, Hans, HEDLING, Erik (orgs.). Interart Poetics: Essays on the Interrelations of the Arts and Media. Amsterdam and London: Rodopi, 1997, p. 35-46.
 

_____. The Ekphrastic Model: Forms and Functions. In: ROBILLARD, Valerie; JONGENEEL, Els (eds.). Pictures into Words: Theoretical and Descriptive Approaches to Ekphrasis. Amsterdam: VU University Press, 1998, p. 21-34.


* Professora do Curso de
Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

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