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terça-feira, 13 de março de 2012

O ciclo do misticismo e do cangaço em Pedra Bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego



Prof.ª Dr. ª Edna Polese


José Lins do Rego, um dos maiores representantes do chamado romance de 30, ficou conhecido como o escritor dos ciclos. Assim, suas obras mais conhecidas reúnem memória e imaginação e apresentam o aspecto social de vertente neorealista, que acaba por destacar personagens marcantes como Carlos de Menino de engenho. Realiza em Pedra Bonita e Cangaceiros o que foi identificado como o Ciclo do cangaço, do misticismo e da seca. Enfatiza o problema do fanatismo religioso no Nordeste e retoma o acontecimento messiânico conhecido como Pedra do Reino ou Reino Encantado, para contar a história dos Vieira, família historicamente envolvida com os acontecimentos marcantes do ano de 1838. Em nota da edição publicada pela José Olympio o autor destaca: “Continua a correr neste Cangaceiros o rio de vida que tem as suas nascentes em meu anterior romance Pedra Bonita. É o sertão dos santos e dos cangaceiros, dos que matam e rezam com a mesma crueza e a mesma humanidade.” O acontecimento histórico funciona como via inspiratória para a criação dos personagens que irão representar a tríade que massacra o sertanejo: a volante, o cangaço e a seca e, por outro lado, a religiosidade representada pela figura do beato peregrino que veio para salvar o povo.
José Lins apresenta a condição social e o perfil do sertanejo. É nessa atmosfera  que o autor retorna ao episódio factual ocorrido cem anos antes. No romance Pedra Bonita, lançado em 1938, a narrativa ocorre num período de tempo de mais ou menos 70 anos após os acontecimentos. A seca, fenômeno natural que expulsa o sertanejo de suas terras, traz a morte e a separação dos entes queridos. O cangaço e a volante são faces opostas da mesma moeda: situação criada pela permanência do patriarcalismo, da violência contra os mais fracos, da má distribuição de riquezas. Os fenômenos sociais – o fanatismo religioso e o cangaço – acabam por se constituírem em tipos de refúgio para o abandono desse povo que percebe nas autoridades locais somente a exploração e a injustiça. O autor declara, em registro resgatado no prefácio da 8º edição, que não pretendia fazer romance histórico e que o acontecimento ocorrido na Pedra Bonita é um assunto subjacente ao romance. Em Cangaceiros, a base para a ação é a mesma, com os mesmos personagens, porém a ênfase recai sobre o fim da família Vieira após um dos filhos tornar-se cangaceiro.
Na narrativa de José Lins do Rego, a apropriação da informação sobre a hierarquia monárquica ocorre a partir da utilização do nome da família Vieira para a construção de seus personagens. A informação de registro histórico não apresenta muitos detalhes sobre a participação da família, mas na obra ficcional de Lins do Rego, será um de seus membros, já que parte da família participava da aglomeração messiânica, que irá levar às autoridades as notícias sobre os fatos ocorridos na comunidade. A narrativa de Pedra Bonita trata da família Vieira, descendentes dos participantes do movimento: “ — Menino, tu me disseste que era filho de Bentão do Araticum. Pois fica sabendo. O homem que correu pra ensinar o caminho à tropa foi um de tua gente. Um Vieira. Tu não tem culpa de nada. Mas Deus não esquece. ( REGO, 1976, p. 119)
A família é composta por Bento Vieira, sua esposa Josefina e os quatro filhos: Deodato, Aparício, Domício e Antonio Bento. Na seca de 1904, a família foi obrigada a partir de suas terras no pequeno vilarejo de Açu. Josefina deixa o filho caçula, Antonio Bento, então com cinco anos, aos cuidados de Padre Amâncio. A velha mãe nutre uma esperança de ver o filho padre, desejo que é compartilhado pelo próprio filho e pelo padre, mas, devido ao estado lastimável da paróquia e da pouca influência de Padre Amâncio, tal propósito torna-se improvável. A vila do Açu é composta de figuras que representam a população local: o padre, as beatas, o juiz, os coronéis. Figuras que aos poucos deixam transparecer um receio sobre Antonio Bento, a cria do padre. Os moradores do Açu atribuem aos mórbidos acontecimentos ocorridos na Pedra Bonita, assim como à interferência dos antepassados da família Vieira, o fato da cidade não ser pródiga. Somente com a leitura avançada é possível apreender o verdadeiro motivo porque a família dos Vieira causa repulsa nas pessoas: um dos antepassados foi o responsável por levar às autoridades as informações sobre os sacrifícios ocorridos entre o grupo fanático, guiando-os para o embate que resultou em mais mortes. A interpretação dessa ação é de que houve traição e como a profecia não se cumpriu, recai sobre a família uma espécie de maldição. Assim, é apresentada a razão para o fato de Aparício tornar-se cangaceiro e para Domício tornar-se um dos líderes fanáticos quando o movimento é posto em voga novamente. Antonio Bento, o caçula, está, a essa altura da narrativa, com dezessete anos e acompanha toda essa situação mergulhado em profundas dúvidas sobre os fatos e suas conseqüências.
Bento, personagem principal do romance de José Lins, descobre, a partir do relato de Zé Pedro, um idoso que vive próximo das formações rochosas e serve como conselheiro espiritual para a gente da redondeza, as obscuras informações sobre a Pedra e o envolvimento de sua família com os acontecimentos. A partir da intervenção do irmão mais velho, Domício, ambos partem em segredo para afinal descobrirem a verdadeira história da Pedra. O relato de velho é breve, confirmando a informação do autor em não pretender fazer romance histórico, utilizando-se do acontecimento histórico para embasar a narrativa. Também não há registro sobre a figura de Dom Sebastião. José Lins utiliza-se da mensagem bíblica do novo testamento, a anunciação da vinda de Jesus Cristo, para explicar a força de conduta para que o movimento tomasse corpo:


Lá vem Batista, com as pedras na mão. Ele vem do Piancó. Ele diz pra todos: “— Ainda não sou eu. Só tenho as três pedras. Uma é o Padre, a outra é o Filho, a outra é o Espírito. Eu venho pra dizer que o Filho não tarda. Ele se chama Ferreira, vem no corpo de Antônio Ferreira, vencer os demônios, abrir a porta dos homens que não querem abrir pra os pobres, botar os pobres no lugar dos ricos e os ricos no lugar dos pobres” (REGO, 1976, p. 117)


A cena incorpora os elementos do messianismo: a vinda de um salvador, a promoção de uma vida digna aos que sofrem, a inversão social. João Ferreira, na narrativa de Lins do Rego, representa a figura de preenchimento anunciada por Cristo. Tal caracterização amplia o imaginário sobre a questão dos movimentos messiânicos. Ao fazer a referência bíblica, José Lins apresenta o fundamento cristão da segunda vinda de Cristo, no qual é possível estabelecer uma visão voltada à realidade social de forma a legitimar o traço religioso profundamente enraizado na cultura local, independente da formação de um grupo fanático. A obra de Lins do Rego apresenta a idéia geral de causa e conseqüência de determinada situação social que pode levar ao caminho do cangaço ou do fanatismo. Bentinho experimenta o processo de formação perante situações que vêm ao encontro de sua vida até então simplória e previsível. Tais situações o obrigam a escolher caminhos ou presenciar outras escolhas que reconhece como inexoráveis. Ao final da narrativa, essa imagem fica bem clara, pois diante de duas situações difíceis, a iminente morte de padre Amâncio e a perseguição que a família sofre com a volante, Bentinho parte do Açu rumo a um desses caminhos: buscar o padre de Dores para ministrar a confissão ao moribundo, ou seguir para a Pedra, onde agora sua família buscou refúgio.
O padrinho morria e desejava o consolo de uma confissão, de um ajuste de contas. O Padre Amâncio queria fazer as suas contas, dizer o  que devia a Deus, o que ficara restando, o que deixara de fazer. Aquilo não podia ser. Ele era um santo. Foi quando Bento chegou na encruzilhada que dava para Dores e para a Pedra Bonita. E o tiroteio voltou à sua cabeça, nítido como se ele estivesse olhando de perto. (REGO, 1976, p. 218)


                  Em Cangaceiros a narrativa foca a ação do grupo formado pelo irmão de Bento, Aparício, que assumiu o cangaço após um crime cometido na pequena cidade próxima ao Araticum, terra de seus pais. Sabendo que a justiça não beneficiaria gente humilde, a única saída é o cangaço. A narrativa não relata diretamente os acontecimentos ocorridos no grupo de cangaceiros liderado por Aparício. As ações chegam ao conhecimento de Bentinho e sua mãe, agora refugiados na fazenda do Capitão Custódio, após o segundo massacre à Pedra. Angústia e desolação são os tons que acompanham a narrativa. Os coiteiros e mensageiros simpatizantes dos cangaceiros trazem as notícias do mundo exterior e é dessa maneira que o leitor tem acesso aos acontecimentos. Na narrativa de Cangaceiros o “coito”[1] de Aparício e seu bando pertence ao Capitão Custódio dos Santos. É um local denominado Roqueira. O dono é um homem próspero, mas profundamente magoado com a situação de um mandatário local que assassinou seu filho e a família não teve como vingar-se. Sua esposa Doninha morre de desgosto. Na figura do cangaceiro é que o Capitão Custódio deposita a esperança de ver Cazuza Leutério, o mandatário do crime contra seu filho, vingado pelo cangaço . O tipo de situação que envolve Capitão Custódio e Aparício é uma das facetas que explica a longa permanência do cangaço nos sertões:


O problema dos coiteiros pela ótica policial, era uma engrenagem imensa e complicada; observava-se que qualquer pessoa do sertão era parente e compadre de cangaceiro, amigo ou protetor, de fato ou em potencial.
Existiam dois tipos de coiteiros. O primeiro era constituído pelos fazendeiros, comerciantes e chefes políticos ricos que por necessidade ajudavam Lampião.(...) O outro grupo de coiteiros era constituído de vaqueiros, moradores do campo, das fazendas e por outras pessoas que tinham pouca influência. Entre eles estavam os donos de pequenas e médias propriedades e os seus agregados, lojistas e negociantes dos povoados e arruados. Esse outro grupo não tinha grande proteção e sofria mais amiúde da força policial, principalmente quando se desconfiava de que os coiteiros estavam dando informações inexatas quanto à pista dos cangaceiros. (NASCIMENTO, 1998, p. 206)


                  O grupo de personagens que surge na narrativa de Lins do Rego pertence a essa engrenagem: Bento e sua mãe Josefina, parentes de Aparício, sofrem desde a narrativa de Pedra Bonita as influências de ter o parente tão próximo no cangaço. Capitão Custódio, que protege Aparício por interesses pessoais, representa o médio proprietário que tem pouca proteção policial. Os demais moradores da Roqueira, de uma maneira ou outra, sofrem com a guerra entre o cangaço e a força policial. Esse modo de narrar segue a maneira como a população acessou e construiu a imagem de Lampião, o mais conhecido dos bandoleiros. Informações desencontradas, notícias falsas e exageros nos relatos sobre a ação dos cangaceiros fortaleceram o imaginário sobre essas figuras. Outro meio utilizado por Lins do Rego e que tem fonte no imaginário do sertão nordestino é a literatura popular, ou a literatura de cordel. Dioclécio, cantador que aparece desde a primeira parte do romance Pedra Bonita, surge na narrativa de Cangaceiros como a voz que leva a vida de Aparício e de sua família para os versos e a viola. Ariano Suassuna faz um comentário sobre a obra de Lins do Rego analisando Cangaceiros a partir da continuidade de Pedra Bonita como uma “Gesta de Aparício”, o terrível cangaceiro que espalhará o terror em todas as nuances e camadas da comunidade local. Amplamente inspirado em cangaceiros famosos que assolaram o sertão nordestino a partir do final do século XIX, Aparício é construído a partir das figuras de Jesuíno Brilhante, Antonio Silvino e Lampião, certamente o mais famoso deles.


NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998.


REGO, José Lins do. Pedra bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
_____. Cangaceiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.




[1] No texto de José Lins do Rego surge o substantivo “coito” no sentido de acoitar, verbo que significa dar couto ou guarida, refugiar-se. No texto, o autor utiliza-se de uma corruptela do termo: “Bentinho procurou saber do irmão. O Beiço Lascado estivera com ele no coito do Coronel Ramalho.” (REGO, 1976, p. 119.) “A gente ficava parado e ninguém podia sair do coito” (REGO, 1976, p. 121)

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