Pesquisar este blog

quarta-feira, 15 de maio de 2013

O MERCADOR DE VENEZA, DE MICHAEL RADFORD: ADAPTAÇÃO, HISTORICIZAÇÃO E INTERPOLAÇÃO



Anna Stegh Camati (UNIANDRADE/PR)
Em O mercador de Veneza (1596), a lógica maniqueísta não se sustenta. Nesse texto, Shakespeare subverte os estereótipos raciais, manipula os conceitos culturais com grande sutileza e introduz uma multiplicidade de vozes dissonantes para refletir sobre os males da intolerância e do preconceito. Diversos críticos argumentam que a temática da peça remete à Londres do século XVI, um centro comercial emergente, e à forte onda de antissemitismo que varreu a cidade em 1593-94. Em evidente paralelo com Veneza, Shakespeare não só mostra a explosão dos ódios e agressividades entre cristãos e judeus, fruto da intolerância recíproca em suas relações de oposição e dependência, mas também desmistifica a ideologia dominante, apontando o poderio econômico do judeu como uma das causas de sua demonização (CAMATI, 2009, p. 62).
Em função do fanatismo que imperava naquele momento histórico, a peça O judeu de Malta, de Christopher Marlowe, escrita em 1589, cujo protagonista encarnava todos os vícios que uma visão preconceituosa pudesse conceber, foi remontada em Londres. Diferentemente de Marlowe, a peça de Shakespeare, provavelmente escrita por encomenda para concorrer com a companhia de teatro rival, evitou o estereótipo ao criar Shylock, uma personagem de extraordinária complexidade. Apesar de apresentar características condenáveis, Shylock é um ser humano que sofre e tem motivações compreensíveis para agir da forma que age, sendo ao mesmo tempo vítima de constantes perseguições e carrasco vingativo.
O filme O mercador de Veneza (2004), com direção de Michael Radford, cineasta indiano radicado na Inglaterra,  e Al Pacino no papel de Shylock, é considerado a primeira adaptação cinemática do texto homônimo de Shakespeare desde a era do cinema mudo.
Ao idealizar o roteiro do filme, Radford exerceu, em primeiro lugar, a função de leitor, um procedimento que nunca é inocente, visto que a ótica do adaptador é sempre decisiva na releitura de um texto. O teórico de cinema Robert Stam argumenta que a fidelidade ao texto-fonte deixou de ser critério maior de juízo crítico na prática da adaptação cinematográfica. Acrescenta, ainda, que os desenvolvimentos das teorias pós-estruturalistas e da recepção abriram espaço para novas abordagens e perspectivas críticas: a adaptação agora é vista como expressão do processo cultural em constante mutação ou como diálogo intertextual (STAM, 2008, p. 9-12). Neste ensaio, alguns aspectos do filme O mercador de Veneza, adaptação cinematográfica do texto homônimo de Shakespeare realizada por Michael Radford, serão discutidos, dentre eles as transformações necessárias para atender as exigências das mídias audiovisuais, como cortes de texto, encurtamento de falas, interpolações visuais e textuais e a reconfiguração da narrativa.
O cinema, assim como a maioria dos veículos de comunicação, sempre emprestou e reciclou elementos de outras artes e mídias. No filme de Radford, a ambientação e os figurinos são de época: as imagens de algumas cenas foram filmadas em locações externas e internas da Veneza de hoje, como a ponte do Rialto e o palácio do Doge, e, outras, em estúdio, inspiradas na pintura de artistas como Ticiano, Caravaggio e Velázquez, para citar apenas alguns. Como nos filmes A megera domada (1967) e Romeu e Julieta (1968), de Franco Zeffirelli, não se trata de pinturas específicas, mas de especificidades da pintura como cores, formas, luz, texturas e enquadramentos utilizadas como inspiração para a composição de cenários, figurinos e organização espacial. Os elementos pictóricos neste tipo de abordagem não são apenas decorativos, mas funcionais e sugestivos.
Por meio da iluminação, mise en scène, composições cromáticas e angulações de câmera, o cineasta alude a características de perspectiva, luz e sombra, e configurações arquitetônicas da pintura do humanismo italiano e do barroco italiano e espanhol. A representação de figurinos de época, de interiores de palácios ricamente ornamentados e de mesas de banquete decoradas com travessas de frutas e outros adornos e utensílios remetem a moldelizações visuais como a natureza morta e os retratos. Outras cenas que incluem espelhos e molduras em sua composição também seguem metarepresentações inspiradas em quadros.
Apesar de ambientado no século XVI, o filme de Radford nos apresenta uma leitura pós-holocausto, embasada em considerações críticas neo-historicistas e feministas. O cineasta acentua as dimensões trágicas de Shylock, flagrando não somente a crueldade e o desejo de vingança do judeu, mas também o seu sofrimento causado pela hipocrisia da sociedade hegemônica cristã que despreza Shylock por depender do seu dinheiro para realizar transações comerciais.

A versão integral do artigo foi publicada no livro Ensaios de literatura, teatro e cinema. Orgs. Anelise Reich Corseuil et al. Florianópolis: Fundação Cultural Badesc/ Cultura Inglesa, 2013.


           


Nenhum comentário:

Postar um comentário