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quinta-feira, 15 de maio de 2014

Por que incluir teorias de autobiografia e memória na programação de Linguagens da Alteridade?

Prof. Mail Marques Azevedo

A ementa da disciplina Linguagens da Alteridade, que ministro no primeiro semestre de 2014, prevê o estudo de “textos teóricos e narrativos que trabalham questões de gênero, etnia e classe social. A busca da identidade e a presença da alteridade. O tempo e o espaço da identidade/alteridade. As figurações do outro”.O princípio básico dos estudos propostosé a relação Self/Other, a oposição “eu”/“outro” que postula a existência de um “eu” (self) subjetivo que constrói tudo o que é alheio a ele como “outro” (other). A oposição, por vezes colocada em termos diferentes, tais como centro/margem ou dominante/dominado, origina-se de indagações sobre identidade no mundo da supremacia branca e masculina, onde o olhar do “outro” define parâmetros para a experiência do ser.
Colocado diante de um mundo que o rejeitacomo diferente pelo aspecto físico e politicamente inferior─ o escritor negro, artista cuja visão transcende a do homem comum, sente-se compelido a reverter o status de inferioridade social e psicológica de seu povo, mediante a afirmação da identidade do indivíduo e do grupo. Daí a importância das narrativas autobiográficas na literatura de minorias, para afirmação da dignidade do indivíduo, e da reconstituição da memória histórica da coletividade, para valorização do grupo.

Toni Morrison, detentora do Nobel de literatura em 1993, considera dever do escritor negro preencher as lacunas entre presente e passado, com imaginação e fantasia, para ajudar a construir a memória coletiva de seu povo. [1]

A obra não ficcional de Morrison e a série de entrevistas, iniciada em 1981, em que discute seu processo de criação, confirmam sua preocupação central como artista: o dever de utilizar a arte para fortalecer o povo negro, torná-lo capaz de sobreviver a circunstâncias difíceis no presente. Em entrevista a Taylor-Guthrie, em 1994, Morrison afirma: “Sei que não posso mudar o futuro, mas posso mudar o passado. É o passado, não o futuro, que é infinito. Nosso passado foi apropriado por outrem. Eu sou uma das pessoas que devem reapropriá-lo” (1994, p. 14-15).

 O processo de re-memória.


 A fim de reapropriar o passado de seu povo, Morrison afirma que é necessário confiar não apenas em suas próprias lembranças, mas também nas lembranças de outros – em outras palavras, recorrer à memóriaindividuale à memória coletiva.

            Embora em termos de função biológica a memória seja individual, por envolver a consciência do indivíduo, antropólogos e sociólogos, com destaque para Maurice Halbwachs, insistem em que toda memória é social. Os indivíduos lembram como membros de grupos; o fato de pertencer a um grupo empresta validade a suas recordações.

Ao discutir seu processo de reconstrução do mundo ancestral negro, torna-se evidente que Morrison emprega as duas categorias de memória: afirma partir da recordação individual de uma imagem – não um símbolo, mas simplesmente uma figura – e dos sentimentos que a acompanham, para a criação do texto. Mas quando tenta recriar aquele mundo e imaginar a vida interior das pessoas que o habitaram, é preciso recorrer às lembranças de todos os componentes do grupo, cuja memória coletiva confere credibilidade e coerência ao passado revivido.

Na questão da memória individual, é possível estabelecer paralelos com os conceitos proustianos de memória voluntária e involuntária, no processo de transcender o tempo e recordar experiências passadas, descrito em detalhe em Le TempsRetrouvé, último volume de À laRechercheduTempsPerdu (Em busca do tempo perdido), que Samuel Beckett discute no ensaio intitulado Proust.

Memória voluntária é a memória uniforme da inteligência, na reprodução daquelas impressões do passado formadas de maneira consciente e racional. Recordar, neste caso, é comparável à ação de folhear um álbum de fotografias, simples reproduções uniformes e apagadas que, efetivamente, nada contêm do passado.

            Por outro lado, a ação da memória involuntária, estimulada por um som, cheiro ou qualquer outro estímulo sensorial, é capaz de liberar na mente do indivíduo uma cadeia de associações, que trazem de volta o passado qual corrente impetuosa que se funde com o presente. A memória involuntária penetra na essência do ser, que é preservada em uma parte inacessível da mente, a salvo da ação corrosiva do hábito, que privilegia apenas o imediato e superficial.

 

Mas aqui, nesse “gouffreinterdità nos sondes”, está armazenada a essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas aglutinações, que os simplistas chamam de mundo; o melhor, porque acumulado sorrateira, dolorosa e pacientemente a dois dedos do nariz da vulgaridade, a fina essência de uma divindade reprimida cuja disfazionesussurrada afoga-se na vociferação saudável de um apetite que abarca tudo, a pérola que pode desmentir nossa carapaça de cola e de cal. (BECKETT, 1970, p. 31)

 
Exemplo de memória involuntária, o famoso episódio da madeleine mergulhada no chá, narrado por Marcel Proust, traz à tona num ápice os sentimentos que acompanhavam as recordações do protagonista de sua juventude e das pessoas que amava.

Morrison descreve processos similares de recordar, tanto em experiências pessoais como nas que atribui a suas personagens. Como afirmado acima, seu processo de criação segue o caminho recordação da imagem (figura), significado, texto. Na criação de uma determinada cena, por exemplo, ela afirma que “vê” uma espiga de milho verde. A figura da espiga vai e vem, envolta em um “nimbo” de emoção: o prazer de comer milho doce quente, na companhia afetuosa de vizinhos e parentes.

Em Amada, eventos aparentemente insignificantes da vida cotidiana podem originar uma cadeia de lembranças cruéis, cuidadosamente reprimidas na memória de Sethe, a protagonista. Trata-se de um exemplo de memória involuntária:

Então alguma coisa. O barulho da água, a visão dos sapatos e meias largados na trilha, ou Here Boy lambendo a poça perto de seus pés, e, de repente, lá estava Sweet Home rolando, rolando diante de seus olhos, e, embora não houvesse uma única folha naquela fazenda que não lhe desse ganas de gritar, Sweet Home desenrolava-se diante dela numa beleza desavergonhada. (MORRISON, 1987, p. 14-15)

 

No dizer de Beckett, a memória involuntária é “um mágico rebelde que escolhe seu próprio tempo e lugar para a operação do milagre” (1976, p. 33). Por outro lado, para Morrison, memória, ou o ato deliberado de relembrar, é uma forma de criação voluntária (willedcreation)que descreve no ensaio “Memory, CreationandWriting”. O importante, diz ela, é deter-se no modo como a imagem do passado surge e por que aparece nessa forma específica, e deter-se nos sentimentos que acompanham o evento recordado. Mesmo fragmentos reduzidos de lembranças põem em funcionamento o mecanismo de criação, que é o processo pelo qual Morrison aglutina esses fragmentos em partes – que ela preferemanter independentes, sem conexão. Assim, a memória fornece tanto o germe de um tema como a estrutura não linear de seus romances, que espelham a fragmentação característica das recordações.

Na criação da personagem-título de Sula, romance publicado em 1986, Morrison afirma que partiu das recordações fragmentadas de uma visitante, uma mulher que fascinou a Morrison criança: seu perfume, a cor, o alheamento, mas, principalmente, a aura indefinível que a envolvia, resultante da atitude das outras mulheres quando pronunciavam seu nome, “Hannah Peace”, em tom que mesclava respeito, deslumbramento e mais alguma coisa que soara para a menina como perdão.

O caráter coletivo da narrativa negra é, de fato, uma tradição dos povos africanos: histórias com muitos autores, transmitidas oralmente, que visam a uma verdade maior. Como um modernogriot- o contador de histórias da tribo – Morrison constrói suas histórias a partir de recordações pessoais e lembranças da comunidade. “Essas pessoas”, diz ela ao falar de seus ancestrais, “representam meu acesso a mim mesma; minha entrada em minha própria vida interior. É por isso que as imagens que flutuam à sua volta – os resquícios, vestígios, por assim dizer, que restaram no sítio arqueológico – são os primeiros a vir à tona […] (1998, p. 195).

A questão dos sítios da memória é de suma importância também para Halbwachs, para quem os espaços mentais das lembranças sempre se reportam ao espaço físico ocupado pelo grupo: “Nossas imagens de espaços sociais, em razão de sua relativa estabilidade, produzem em nós a ilusão de não mudar, de redescobrir o passado no presente. Conservamos nossas recordações referindo-as ao meio material que nos rodeia” (1982, p. 23).

De forma semelhante, a re-apropriação de experiências passadas dos escravos negros nos Estados Unidos, em Amada, é um processo que Toni Morrison denominare-memória, que envolveos atos de “des-(re)lembrar” (dis(re)membering) e “re-lembrar” (re-membering).

As conotações antitéticas de re-memberingedis(re)memberingpõem em destaque a tensão entre memória e esquecimento, que prova o significado central do romance. A moldura espacial é o sítio da memória, apresentado ao leitor na conversa de Sethe com a filha Denver, em Amada.

Algumas coisas se vão. Passam. Outras simplesmente ficam. Eu costumava pensar que era minha relembrança (re-memory). Você sabe. Algumas coisas a gente esquece, outras jamais. Mas não é bem assim. Os lugares continuam ali. Se uma casa é incendiada, ela some; mas o lugar, a imagem dele, permanece, e não só em minha relembrança (re-memory), mas lá fora, no mundo. O que recordo é uma imagem flutuando fora de minha cabeça. Quero dizer, mesmo que eu não pense nela, mesmo que eu morra, a imagem do que fiz, conheci ou vi continua lá. Bem no lugar onde tudo aconteceu. (p. 50-51) (grifos da autora)

 

O processo de rememória nos romances de Morrison, portanto, enfatiza a função dos espaços materiais, embora poucos vestígios (imagens) possam ser encontrados no “sítio arqueológico”.

Neste particular, Morrison afirma não confiar nas narrativas dominantes como instrumentos na busca das raízes culturais negras. Prefere apoiar-se no que chama de “ardis” da memória para desencadear o processo de invenção. Sua narrativa transcende até mesmo os limites da história e do mito, entrando no campo da contra-memóriaque, nas palavras de George Lipsitz, “é um modo de recordar e esquecer que tem início com o local, o imediato e o pessoal […] e a seguir se expande para construir uma história completa.” A contra-memória é comum nas narrativas de minorias e focaliza “experiências localizadas com a opressão, utilizando-as para colocar em novos parâmetros e reformular o foco de narrativas dominantes que pretendem representar experiências universais.” Se tais narrativas não oferecem respostas à atual crise do pensamento histórico, indicam certamente outros meios de buscar respostas (1990, p. 213).

Em Canção de Salomão, o mito do escravo que voa de volta para a África, celebrado em canções folclóricas, inspira o protagonista, Macon Dead, a empreender a busca pela verdadeira história de sua família e dos afro-americanos, em épocas anteriores à sua escravização. Só então consegue viver efetivamente no presente. Não se trata de uma rejeição da história, mas de sua reconstituição com base nas tradições orais e na experiência local, no tempo da contra-memória.

Desse modo o artesanato da memória e da ficção congregam-se nos romances de Toni Morrison, para a re-apropriação do passado de seu povo. O objetivo declarado de Morrison é o acesso à vida interior não escrita de seu povo, que não aparece nem mesmo nas narrativas de escravos. Sua arte pretende reconstruir a memória racial dos afro-americanos – a que atribui valor maior que a realizações individuais. Para atingir seu objetivo, é necessário apoiar-se na imaginação. Em consequência, o trabalho de Morrison, para a maioria das pessoas, se enquadra no fantástico, mítico, mágico, inverossímil. Mas como evitá-lo, pergunta-se ela, se o seu trabalho deve transmitir uma realidade diferente daquela veiculada em narrativas históricas aceitas oficialmente.

 

 

Se meu trabalho deve confrontar uma realidade diferente da realidade aceita pelo Ocidente, deve centralizar e dramatizar informação desacreditada pelo Ocidente – desacreditada não por não ser verdadeira ou útil ou mesmo de algum valor racial, mas porque é informação normalmente descrita como “lore” ou “boato” ou “mágica” ou“sentimento”. (MORRISON, 1984, p. 388)

 

 

Que sua narrativa assuma características míticas ou fantásticas é irrelevante, pois a diferença essencial não está entre fato e ficção, mas entre fato e verdade. Morrison reconstrói o mundo de seus ancestrais, explora sua vida interior, seguindo o caminho de imagens vívidas e arrebatadoras, que emergem de lembranças compartilhadas não escritas, e que conduzem à revelação de uma espécie de verdade.

A relevância das narrativas autobiográficas na expressão da identidade individual e o mecanismo da memória como instrumento de criação literária e resgate da memória coletiva de um povo, observado na obra de Toni Morrison,esclarecem o motivo da inclusão de autobiografia e memória em um programa que discute linguagens da alteridade.

 



[1]Excertos do trabalho intitulado TONI MORRISON´S “SITE OF MEMORY” WHERE MEMOIR AND FICTION EMBRACE”, publicado em inglês na Revista da ANPOLL 22.
 
REFERÊNCIAS
BECKETT, Samuel. Proust.London: Calder & Boyars, 1970.
HALBWACHS, Maurice. On Collective Memory. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
LIPSITZ, George. Time Passages.Collective Memory and American Popular Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990.
MORRISON, Toni. Memory, Creation, and Writing. In: Thought,vol 59, # 235 (December 1984). P. 385-390.
______. Amada.Trad. E.K. Massaro São Paulo: Círculo do Livro, 1987.
______. The Site of Memory. In: ZINSSER, William. Inventing the Truth.The Art and Craft of Memoir.Boston & New York: Houghton Mifflin Co., 1998. p. 185-200.
TAYLOR-GUTHRIE, Danille (Ed.). Conversations with Toni Morrison. Jackson: Un. Press of Mississippi, 1994.
 
 

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