Pesquisar este blog

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A biblioteca de Baudolino e Pantagruel: uma história de intertextos

*Isadora Dutra
De tema inusitado, a obra de título Ars honeste pettandi in societate (Da arte de peidar polidamente em sociedade) é citada no romance Baudolino, publicado em 2000 pelo escritor italiano Umberto Eco.  A mesmo obra já havia sido referida pelo escritor francês renascentista Rabelais, sob a assinatura de Mestre Alcofribas Nasier (o primeiro e o segundo livros que compõe seu romance são assinados com o anagrama do "êxtrator da quinta essência"), na célebre lista dos livros encontrados por Pantagruel no episódio da Biblioteca Saint Vítor. Cinco dos títulos do repertório do gigante rabelaisiano reaparecem, cinco séculos depois, na reduzida lista do personagem medieval de Eco, Baudolino, quando este relata sua trajetória ao historiador bizantino Nicetas Choniates, retomando o topos da formação do herói na universidade e fazendo referência à "mui magnífica" biblioteca parisiense de Rabelais.
A presença do intertexto na forma da lista de livros reproduzida parcialmente por Eco tem efeito curioso tanto sobre a narrativa contemporânea quanto sobre a leitura da narrativa renascentista. No romance contemporâneo de Eco, o personagem é medieval. Baudolino faz parte de um contexto, portanto, anterior ao do gigante renascentista Pantagruel de Rabelais e, segundo seu relato ao seu interlocutor, os livros citados foram inventados. Os títulos De optimitate triparium; De modo cacandi; De castramentandis crinibus; De patria diabolorum e a obra de Hardouin de Grätz, Ars honeste petandi, referidos por Baudolino são os mesmos que aparecem na longa lista pantagruélica. Porém, na versão de Baudolino, as obras atribuídas em Rabelais ao teólogo Hardouin, ao historiador Beda (672-735), ao filósofo eclesiástico do século XVI Pierre Tartaret e ao poeta de Mântua, Hieronymo Folengo (1491-1544), não passam de invenção.
Interessado nas obras, o interlocutor de Baudolino, o cônego Rahewino, pede cópias das mesmas, causando problemas ao bibliotecário, incapaz de encontrar os livros inexistentes. Baudolino conclui a trapalhada sugerindo que as obras devem ter sido escritas depois por algum cônego para solucionar a demanda criada por ele mesmo e desejando que alguém finalmente as encontre. Baudolino reescreve assim a história dessas obras, achadas, no século XVI, na obra de Rabelais, pelo gigante renascentista Pantagruel. O herói de Eco utiliza um recurso comum do romance de Rabelais, o de inventar ou, pelo menos, alterar as referências citadas. Criando, por exemplo, títulos falsos que atribui a autores existentes, o escritor francês provoca constantes deformações nas informações originais das fontes às quais seus personagens recorrem a todo instante.
O expediente retórico de Rabelais propõe a ideia de autoridade do pensamento dos antigos, conferindo legitimidade à voz de seus personagens e, ao mesmo tempo, provoca o efeito inverso, através de um processo de desautorização das fontes provocado pelos erros, alterações, mudanças e deformações no seu contexto semântico original. Por meio da retomada da imagem da Biblioteca Saint Vítor em Baudolino, Eco associa o seu romance a uma obra marcada pela presença maciça de variadas formas intertextuais, desde citações até elementos estruturais que formam o "mosaico de discursos" sugerido por Julia Kristeva (1976, p.152).
A presença da lista de livros de Rabelais em Eco é a reafirmação do intertexto como recurso narrativo.  Além disso, a inserção dos livros e a ideia de terem sido inventados por Baudolino funciona como uma materialização do conceito de intertexto na narrativa: são textos dentro do texto literalmente. A referência à biblioteca, através da qual Eco também dialoga com Jorge Luis Borges por meio da imagem do labirinto, ainda reforça essa ideia: o texto do narrador mentiroso de Eco remete ao texto do narrador anagrama de Rabelais, o qual remete a fontes da Antiguidade e do Medievo, numa corrente infinita.
A partir da presença do intertexto de Rabelais, a narrativa de Eco indica um modo de escrita pautado pela coleção, pela referência aos discursos alheios. A construção do texto depende do diálogo intertextual, abrindo para o leitor a expectativa de que a história de Baudolino se faz de outras histórias provenientes de campos textuais tão variados quanto os presentes em Rabelais. O intertexto nesses autores produz verdadeira cornucópia de referências, dependendo disso a estrutura narrativa. No entanto, mais do que uma indicação de leitura do próprio texto, o recurso de Eco interfere também na leitura do texto fonte do intertexto. A Biblioteca São Vítor de Baudolino modifica o modo de (re)ler a obra originária da imagem, o romance de Rabelais. O gigante renascentista Pantagruel, depois da reinvenção intertextual de Eco, encontra livros inventados pelo personagem medieval do Piemonte, Baudolino, durante sua estadia em Paris.
Nesse sentido, o relato de Baudolino, confirmando até certo ponto a ideia original do romance de Rabelais, sugere que a tradição medieval estudada por Pantagruel na biblioteca não passa de pura invenção, de escritos aleatórios. Ao mesmo tempo, o problema criado por Baudolino em torno dos livros inexistentes inventados faz com que as obras, depois escritas por algum cônego, passem a existir, compondo de fato o repertório do gigante renascentista. Dessa forma, as obras inventadas ou alteradas parodicamente na lista de Rabelais são criadas no novo contexto narrativo de Eco: as obras falsas agora foram escritas de verdade.
O texto de Eco é composto como uma verdadeira biblioteca, desenvolvido a partir da presença constante de outros textos. A imagem da biblioteca de São Vítor, repetida em Baudolino, depois de referida por Pantagruel, expressa e expande a noção de Kristeva (1976, p.146) de "livros dentro do livro", empregada em relação à obra de Jean de la Salle, a partir da qual propõe o conceito de intertextualidade tendo por substrato a noção bakhtiniana de dialogismo, e entendendo o contexto renascentista pelo seu "clima de bibliofilia". O romance-biblioteca de Eco propõe cada livro como um verdadeiro labirinto de referências explícitas ou não. Cada obra constitui-se assim de uma grande lista ou como rede de citações, imitações, cópias, empréstimos de todo tipo de matéria discursiva proveniente de outros livros ou documentos. Toda obra é, na verdade, um acervo variado que se abre ao leitor.

ECO, Umberto. Baudolino. Tradução: Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Record, 2001.
KRISTEVA, Julia. Le texte du roman: approche sémiologique d'une structure disvursive transformationelle. 2ª ed. Paris: Mouton, 1976.
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Tradução: David Jardim Júnior. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.


*Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário