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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Os monstros são os outros

*Isadora Dutra
As grandes navegações do século XV que inauguram a Idade Moderna impulsionaram o conhecimento geográfico e cartográfico. Mas a viagem já era uma prática presente na vida antiga e medieval tanto para fins comerciais quanto religiosos. A viajem antiga e medieval acontece por via terrestre e também marítima, porém, circunscrita ao espaço mediterrâneo. Além do desenvolvimento da cartografia , a viajem inclusive como topos literário, também repercute sobre o imaginário da época, expresso em diferentes manifestações culturais.
    No contexto medieval, a percepção da fronteira do mundo conhecido remete à intenção, propagada no período, de organização de uma taxonomia dos seres monstruosos que, no imaginário europeu, habitavam o território desconhecido. Geografia, o desconhecido e a presença dos monstros sobre a terra são elementos indissociáveis no imaginário da época: a localização geográfica servia de fundamento para a definição das características dos monstros mencionados nas taxonomias transmitidas por gerações. O pensamento geográfico propôs durante séculos a relação entre caráter, aparência e o lugar destinado a cada ser no mundo. Dessa forma, localização e climatologia eram determinantes na definição da monstruosidade.
      A designação de certos seres como monstros atravessou as eras antiga e medieval referindo, em alguns casos, indivíduos reais pertencentes a culturas diferentes daquela do contexto em que eram criadas as taxonomias. Nesse sentido, o monstro significa a marca da diferença. É o que ocorre, por exemplo, na obra de Homero, em que os seres que divergem da cultura grega são classificados do ponto de vista da monstruosidade. Do mesmo modo, a visão etnocêntrica da cultura europeia, que entendia a si mesma como referencial ordenador do mundo e como superior às demais, criou taxonomias para categorizar o diferente. Além do caráter de etnocentrimo, o significado dos monstros também está associado à questões de ordem teológica, explicando as diferenças entre os homens pelo fator da interferência divina. Pelo viés da teologia, o monstro também expõe a diferença religiosa entre os povos, elemento fundamental na mentalidade medieval e que está presente, por exemplo, na literatura de cavalaria, na qual o monstro gigante desempenha papel importante e representa o outro, culturalmente e religiosamente distinto.
     Por outro lado, as taxonomias de monstros produzidas desde os autores gregos até os medievais incluiam listas de seres fabulosos, que não chegavam a designar uma realidade cultural diversa de fato encontrada pelos viajantes. Duas compreensões em relação aos seres monstruosos podem ser apontadas: uma indica a crença em sua existência real, um entendimento literal dos monstros que, no entanto, perde força a medida que as descobertas de novos territórios e a ampliação dos conhecimentos geográficos não confirmam a sua presença nas regiões longínquas onde, imaginava-se, deveríam habitar, relegados, na mentalidade medieval, ao espaço ainda não explorado. Outro modo de compreensão ainda diz respeito à uma postura filosófica que faz dos monstros um instrumento para pensar o desconhecido, um modo de acessar as questões relativas ao poder divino e ao conhecimento de Deus.
     Os teólogos da igreja católica medieval ocuparam-se em explicar a origem e o significado dos monstros no quadro dos dogmas cristãos, tornando a deformidade um veículo alternativo de questionamento filosófico acerca do ser. Nesse contexto, o monstro alcança um sentido simbólico, destinado a busca de explicações que a perspectiva tradicional dialética só era capaz de revelar de modo incompleto. Esse aspecto filosófico da monstruosidade encontra continuidade no período renascentista, porém, tem presença mais restrita, sendo extinto do pensamento teológico e minimizado no filosófico, tornando-se quase exclusivo ao campo artístico do estilo grotesco.
      Pode ser percebida ainda uma terceira leitura, que diz respeito ao campo da investigação científica, concentrada na avaliação dos nascimentos de indivíduos com deformidades. Os tratados teratológicos surgem como uma tendência que, progressivamente, substitui as taxonomias das raças de monstros (que designavam seres reais ou fabulosos, conforme eram difundidas na Idade Média). Nesse caso, a referência está nos indivíduos de aspecto monstruoso, os quais passam a ser descritos com mais frequência conforme desperta, na Renascença, o interesse pelo corpo humano de modo geral e pelo monstruoso. Nesse caso, a deformação passa a ser interna ao conceito de humanidade, enquanto o monstro fabuloso está no limiar da humanidade.
      O monstro na Renascença sofre transformações de significado e difere do monstro medieval em vários aspectos, ao mesmo tempo em que em certos casos, como no processo de descoberta e sobretudo na posterior colonização do Novo Mundo, reproduz ideias de alteridade associadas à monstruosidade. A figura do monstro presente na literatura antiga indica as diferenças entre povos e também as ameaças da natureza para a vida humana. Na literatura medieval o monstro basicamente representa o outro, enquanto no debate teológico constitui acesso ao universo incompreensível do divino.
      Alteridade e monstruosidade são, portanto, uma associação recorrente na visão de mundo da época. A literatura de cavalaria de modo geral é exemplo do imaginário do monstro que habita o desconhecido e representa uma outra cultura, além da recuperação das taxonomias antigas. Nos romances de cavalaria o monstro aparece na figura do gigante, um representante de uma religião e cultura diferente. O gigante, desproporcionalmente ameaçador em relação ao herói, é o mouro a ser vencido pelo cavaleiro cristão. A sua monstruosidade significa a marca da diferença.
      A tradição textual relativa aos monstros é transmitida para a era medieval, por três vias fundamentais: (1)- os romances do ciclo de Alexandre; (2)- a taxonomia de Plínio e (3)- os textos da Bíblia e os comentários dos teólogos.


KRITZMAN, Lawrence D. Representing the Monster: Cognition, Cripples, and Other Limp Parts in Montaigne's "Des Boyteux". In COHEN, Jeffrey Jerome. Monster Theory: Reading Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.

FRIEDMAN, John Block. The monstrous races in medieval art and thought. Syracuse: Syracuse UP, 2000.

STEPHENS, Walter. Giants in Those Days: Folklore, Ancient History and Nationalism. Lincoln: University of Nebraska Press, 1989.


WILLIAMS, David. Deformed discourse: the function of the monster in mediaeval thought and literature. Montréal: McGill-Queen’s UP, 1996.

*Professora do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade

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