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segunda-feira, 13 de novembro de 2017

NU DESDE O NADA: O PERIGO DA NUDEZ COMO POSSIBILIDADE ESTÉTICA



Prof. Dr. Edson Ribeiro*

                                                             Victor Meirelles, Moema, óleo sobre tela, cerca de 1866. 
                                                                                            Museu de Arte de São Paulo, São Paulo


Quando Victor Meirelles pintou Moema, em 1866, o nu nas artes plásticas era uma prática corriqueira havia séculos. Milênios até. Talvez o nicho que reconhecesse a arte fosse bastante estreito para que uma tela representando uma cena de clássico da literatura brasileira pudesse causar escândalo. Pelo menos, ali entre os iniciados. Pois foi uma reprodução dessa tela que ilustrou uma reportagem de O Globo, em 17 de outubro, acerca da exposição “Histórias da sexualidade”, a ser realizada no Masp. A intenção, agora, era que um nu feito há cerca de 150 anos incomodasse. Ou que, pelo menos, parecesse ambíguo àquele público que não sabe ainda diferenciar o nu da pornografia comercial.
Trata-se, sem dúvida, de um retrocesso na cultura do país colocar em discussão questões que pareciam devidamente esclarecidas havia muito tempo. Afinal, que leitor pensaria em proibir obras como Lolita ou Dona Flor e seus dois maridos baseado na existência de cenas de sexo? Certamente, o leitor que não lê, apenas ouve falar. Outra vez, a arte respira com a existência de um nicho que compreende obras devidamente conhecidas, já antigas. E sofre com o desconhecimento, por parte de uma parte da população, da existência de obras de arte como aquelas. A invasão do senso comum nas mídias em que essa parte da população pode se manifestar faz com que os valores que dão origem à obra de arte fiquem distorcidos. Outra vez, ouve-se que arte plástica é para decorar e a ficção, em todas as suas formas, para entreter. O senso comum acredita que a regra tenha sido exatamente a assimilação de valores não-estéticos, ou seja, da moralidade convencional, com seu atrelado gosto pelo belo sensível como clichê, e não a experimentação formal e o questionamento dessa mesma convencionalidade.
Parece estranho, agora, que uma exposição que traga ao Brasil artistas como Ingres ou Renoir tenha que passar pelo crivo do impedimento do acesso de jovens e crianças. É como supor que aqueles mesmos pintores, nas suas juventudes, não tivessem tido acesso aos grandes museus europeus. Não tivessem visto obras de arte de verdade, de artistas fundamentais. Não tivessem podido reconhecer o nu como prática artística recorrente desde a Antiguidade em povos de culturas díspares e diversos níveis de desenvolvimento.
Milhares de anos depois de artistas antigos, como Miron e Praxíteles, terem esculpido nus famosos até agora, ou de outros terem pintado paredes de palácios e templos com faunos e outras criaturas em sua nudez inocente ou provocadora, aparece agora uma horda de pessoas que desconhecem a arte como tal. Querem impor aquilo que reconhecem na sua completa desinformação. Como aceitar que um nu como O escravo agonizante, de Michelangelo, não seja uma obra de arte, mas batatas ou melancias entalhadas, representando os mesmos temas de bibelôs kitsch, o sejam? Ou como aceitar que a obra de Michelangelo, que representa o exato momento da morte de um escravo, provavelmente atingido por arma, seja entendida como mau exemplo para os jovens? Ou que um escultor em desenvolvimento, jovem ou criança, não possa vê-la ao vivo?

Michelangelo Buonaroti, O escravo agonizante, mármore, cerca de 1513-1515. 
Museu do Louvre, Paris.

Em Moema e O escravo agonizante, existe a narrativa. Há fatos ocorrendo e cada obra representa um momento deles. É comum que se use o fato como forma de se contextualizar o nu em uma cena, talvez de uma obra mais extensa, como peças ou epopeias, como se, apenas assim, a nudez pudesse encontrar uma justificativa. Ou seja, algo que desse a ela uma clara justificativa que não fosse uma cena de sexo. Tal pretexto, evidentemente, já apontava para um certo tipo de preconceito, aquele que precisa ver na imagem nua uma justificativa que a afaste da realização do sexo. O fato de que o nu por si mesmo, como possibilidade estética, seja colocado sob a dependência de uma cena, quase sempre reconhecível pelo público, significa um nível pobre de compreensão da arte e do que significa o belo artístico. O belo como conceito, como produto do intelecto, algo que suplanta o puramente sensível e se realiza como coisa mental, como dizia Leonardo da Vinci, é algo que não chega a uma população ausente dos contextos de produção e recepção de obras de arte. Essa visão empobrecedora coloca a arte sob a dependência de fatores extra-artísticos, como os valores moral, histórico, civil, religioso daquilo que a obra representa, para que ela seja avaliada como boa ou ruim, passível de ser vista ou não por todas as idades. O desentendido só é capaz de ver a coisa representada, só enxerga a mímesis como cópia.
Quando se está diante de uma nudez anódina, ou seja, que não representa uma cena, mas vale como beleza em si própria, é mais frequente que ela seja vista como mau exemplo. O caso talvez mais notório é o de Olympia, de Édouard Manet, em que a modelo posa para a pintura. Não há como reduzir a pose da modelo nem o contexto que a cerca a uma cena. Pelo menos, não a uma cena de sexo. No entanto, os relatos sobre a primeira exposição da obra indicam que parte do público procurava na imagem uma narrativa. Assim, surgiam as hipóteses que atrelavam a modelo à vida de cortesã: ela estaria nua expondo-se a um provável amante, recebe flores dele. O fato de o público atrelar a imagem a sexo a coloca em uma condição de questionável; a obra estaria justificando os ataques a bengaladas feitos a ela. Era como se fosse inquestionável que, falando sobre sexo, ela justificasse os ataques. Para a época, seria mau exemplo não apenas para jovens, mas para a população que assimilava e adotava os valores morais convencionais. Algo de que, historicamente, a arte tantas vezes se desatrela.


Édouard Manet, Olympia, óleo sobre tela, cerca de 1863. 
Museu d’Orsay, Paris.


Quando se adentra o anódino, sejam o clássico ou o da vanguarda, a nudez torna-se tema único de certas obras. Já não se precisa da representação de uma cena. Basta que se pense em Náiade, de Antonio Canova, esculpida por volta de 1820. A beleza vale por si. E quando se fala em beleza, não é apenas a da coisa representada que se fala, mas sobretudo a da representação. Canova, como um neoclássico, buscava o equilíbrio também procurado por gregos e renascentistas. O nu, no caso, vale como beleza da coisa e da obra. Belo sensível, sim, mas sobretudo intelectivo. E, também por isso, merece que o público o veja como grande obra. Tratava-se, naquele momento, exatamente dos ideais da arte burguesa, voltada para um público que se considerava de bom gosto; por isso, era reconhecida por aquelas parcelas da população que teriam acesso a obras assim apenas em espaços coletivos, como praças e museus, mesmo que o nu as desconcertasse. Tal parcela da população se excluiria do universo dessa obra, mas não a excluiria dele; não faria julgamentos de valor, mas apenas os seus rudes julgamentos de gosto de desinformado. O perigo, agora, talvez resida na possibilidade de julgamento de valor por quem não sabe do que se trata.



                                   Antonio Canova, Náiade, mármore, cerca de 1820. 
                                                          National Gallery of Art, Washington.


Antonio Canova, Psyché reanimada por um beijo de Cupido, mármore, 
cerca de 1786-1793. Museu do Louvre, Paris.


Na representação de Canova de uma cena tantas vezes narrada em clássicos de inspiração na mitologia greco-romana, Psyché reanimada por um beijo de Cupido, do final do século XVIII, a sensualidade é motivo para o virtuosismo do escultor, percebida na representação dos toques entre os corpos. Trata-se de uma cena. Há uma narrativa, inclusive conhecida por pertencer à mitologia greco-romana. Essa condição de pertencer à cultura ocidental elevada, de penetrar em segmentos mais bem-informados, faz com que a obra, mesmo representando uma cena de sexo, seja assimilada pela moralidade convencional. Mesmo que seja apreciada apenas por iniciados, o reconhecimento faz da obra um bem cultural. Tradicionalmente, não é algo que seja escondido de jovens e crianças. A cena não é vista como um mau exemplo a ser censurado em museus. Não necessita de tarjas ou tapumes.
Da mesma forma, O sono, de Gustave Courbet, representa uma cena que pode ser considerada sensual. No entanto, trata-se de obra reconhecida. Não é vista como pornográfica. Nem como atentado ao pudor, pelo fato de o público saber que o acesso a ela é facultado a quem por ela se interessa. O público acostumado à arte, seja a literatura, a pintura, a escultura, o cinema, sabe que a pornografia é uma forma comercial, kitsch, de utilização do sexo como pretexto para vendas de produtos. Mesmo havendo representação de sexo, ou sugestão, não se vê a obra de Courbet como produto comercial, para vendas. Ao contrário, foi preciso esperar pelo reconhecimento para que a obra se tornasse importante comercialmente. Assim, o fato de não pertencer ao âmbito da pornografia faz a obra integrar-se a um nicho que, historicamente, reconhece as obras audaciosas e as torna bens culturais que são motivos de visitação pelo público. 


Gustave Courbet, O sono, óleo sobre tela, cerca de 1866. 
Museu d’Orsay, Paris.

No entanto, a situação se torna assustadora porque é possível prever-se o atentado contra obras que representam o nu e o sexo, em um futuro já pressentido agora em 2017. Não se trata mais de ver a arte como algo restrito a quem entende, a quem procura. Dessa forma, estando protegida daqueles segmentos que apenas a ignoram. A posição irônica do desentendido, ao dizer que ele mesmo pintaria um Pollock, protegia a arte e garantia sua intocabilidade. A possibilidade de ataques a obras reconhecidas fica cada vez mais evidente. Torna-se um retrocesso em uma atitude que já era um sintoma de desconhecimento. A direção agora é no sentido da barbárie, da preocupação com a segurança de obras de arte.
O fato de o conceito de arte, assim como o de beleza, não estarem formados na sociedade brasileira passa pelo fracasso do ensino de artes, mas também, evidentemente, pelo desinteresse que leva à desinformação. O mesmo público que não sabe que existe um romance chamado Ulisses e que, provavelmente, o rasgaria, defendendo quem o proibiu há quase 100 anos, caso viesse a conhecê-lo, fica escandalizado ao descobrir que a arte não era o que ele imaginava, não se refere a batatas ou melancias, nem ao bibelô que se compra em aeroporto, mas a algo complexo e que, por não se poder entendê-lo, opta-se por sua exclusão ou destruição. Em 1996, quando a Folha de S. Paulo fez um caderno especial reunindo 15 poetas brasileiros modernos escrevendo sobre vagina, muitos leitores cancelaram a assinatura do jornal. Não interessa quem são Arnaldo Antunes ou Glauco Mattoso; aquilo é indecente, merece ser rasgado. Para estes, mesmo o tema já é motivo para atitudes de exclusão, talvez de violência. O que faz com que a própria sugestão, a imagem mentalizada, ou a palavra por si mesma já revoltem esse público desinformado. Ou mal formado: vê em todas as representações da nudez ou do sexo os tabus relacionados à libido. Um perigo para a própria literatura em pleno ano de 2017. Perigo para Lawrence, para Nabokov, para Jelinek.
A desvantagem da arte plástica em relação à literatura é que ela se expõe como visível de imediato. É arte do espaço. A literatura ainda respira com a possibilidade de estar oculta às multidões e se manifestar apenas ao leitor. A arte plástica acaba, seja por uma mídia ou outra, mostrando suas reproduções, que irritam aquela parcela desinformada e cada vez menos familiarizada com o que a civilização ocidental veio construindo e que considera como já pronto, como é o caso da condição do nu como possibilidade de realização estética. E, de uma forma ou de outra, aquela parcela antes indiferente torna-se agressiva e empoderada graças ao senso comum compartilhado nas mídias.
Para elas, Lucian Freud pinta. O neto do principal teórico dos tabus relacionados à nudez e ao sexo produz seus nus como forma de provocação ao senso comum. Trata-se daquela beleza como produto do intelecto e que torna a arte algo tão distante da assimilação de regras.


Lucian Freud, Benefits Supervisor Sleeping, óleo sobre tela, cerca de 1995. 
Coleção particular.



*Professor do Curso de  
                                                                                     Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE


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