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quinta-feira, 9 de maio de 2019


A ESCRITA DO COTIDIANO  EM JULYO RAMÓN RIBEYRO

 

                                                                                                                    RIBEYRO, Julio Ramón. Prosas Apátridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
                                                                                                                   
                                   Marcelo B.  Alcaraz ¹         
 

                A obra  Prosas Apátridas,  publicada em 2016 pelo editora Rocco, é uma pequena mostra  da literatura do escritor peruano Julio Ramón Ribeyro, autor ainda pouco conhecido no Brasil. Uma escrita  aparentemente  simples e de difícil classificação, o livro explora as inquietações e possibilidades do cotidiano, representando-o  de modo ao mesmo tempo breve e profundo.

               Júlio  Ribeyro foi um  importante escritor peruano nascido em 1929, residiu  parte de sua vida na capital francesa. Ele percorreu  a sua maneira as ruas da cidade parisiense, e de certo modo fugiu  do estereótipo   de muitos outros autores do século XX, como Hemingway ou Fitzgerald,  que deixaram a América  para de alguma  sobreviverem e se divertirem na capital. Ribeyro, ao contrário dos autores supracitados, não idealiza de forma alguma, os trabalhos e os frágeis vínculos formados na cidade, sua escrita é gris, quase amarga quando fala do lugar.

                Ribeyro estreou na literatura com o romance  Los  Gallinazos sin Plumas  ( 1955) e publicou duas outros narrativas longas, no entanto as formas breves  nortearam a sua vida de escritor. Seu contos completos formam um volume de quase mil páginas e uma coletânea  deles foi traduzida para o português, publicada em  2007 pela extinta editora paulista Cosac e Naify.

                 Prosas Apátridas é um livro  constituído por 200 fragmentos: aforismos, reflexões, trechos de diário, e sua difícil classificação é uma de suas maiores marcas. O texto pertence a coleção Otra língua, que lançou no mercado editorial brasileiro relevantes autores latino-americanos como Mário Levrero, Copi, Pablo Palacio, e mais  uma dezena de  nomes importantes nunca antes traduzidos para o português.

                  O modo de  vivenciar   e sobreviver  em Paris  teve como contraponto permanente a ideia do fracasso e dificuldades de toda ordem. Antes de trabalhar na imprensa, o autor fez uso de muitos expedientes para sobreviver.  Não por acaso, tais dificuldades vividas na capital francesa são descritas também nos seus volumosos diários, chamado La Tentación del Fracaso.

                  O título, Prosas Apátridas, segundo o próprio escritor peruano Júlio Ribeyro (RIBEYRO, 2016, p.9), não significa uma literatura sem pátria, mas textos independentes, sempre na fronteira, no limite entre um e outro gênero; originalmente não foram pensados como contos nem prosa poética, diário íntimo ou aforismos, mas podem ocasionalmente apresentar características de tais gêneros, ou permanecerem inclassificáveis.

                 Os gêneros que se apresentam e se entrelaçam na obra  convergem para um aspecto comum: o apreço aos movimentos do cotidiano: velozes,  aleatórios e inconscientes, mas também um espaço desvinculado do universo do trabalho, capaz de gerar cenas surpreendentes. Dor, poesia, solidão, encontros e desencontros dos habitantes de Paris, o livro se insere na tarefa que Certeau pensou para a literatura ao representar o cotidiano:Essas maneiras encontram aí um novo espaço de representação, o da ficção, povoado por virtuosidades cotidianas das quais a ciência não sabe o que fazer” (CERTEAU, 2008, p.142).

                O livro tem uma certa filiação, segundo o próprio autor com o Spleen de Paris de Baudelaire, (RIBEYRO, 2016, p.10) não só por tratar de forma fragmentada o cotidiano parisiense, mas também por representar um dos sentimentos mais frequentes nos dois livros: o tédio.

                Onipresente no século de Baudelaire, mas também frequente na prosa de Ribeyro o tédio é um aborrecimento anacrônico que, além de não ser atenuado pelos chamados avanços da civilização, transmuta-se também em melancolia e depressão: “A vida começa a parecer-nos insulta, lenta, estéril, sem atrativos e repetitiva, como se cada dia fosse o plágio do dia anterior (RIBEYRO, 2016, p. 71).”

                Apesar do aspecto fronteiriço de sua prosa, ela se aproxima constantemente do diário íntimo. Não é demasiado lembrar que Ribeyro foi um grande leitor e produtor de diários, expressando-se em quase mil páginas nesse gênero na obra La tentacion del fracasso (RIBEYRO, 2008). O texto também tem muitas características dos diários íntimos: a onipresente temática do cotidiano e o exercício do autoexame.

                 Segundo Lejeune, no diário: “o autorretrato nada tem de definitivo, e a atenção dada a si esta sempre sujeita a desmentidos futuros” (LEJEUNE, 2008, p. 304). O tom é ácido e o olhar peculiar se dirige às máscaras sociais usadas pelo homem urbano. Para Ribeyro: “Vivemos em um mundo ambíguo, as palavras não querem dizer nada, os valores carecem de valor, as pessoas são impenetráveis, os fatos, uma massa disforme de contradições, a verdade, uma quimera” (RIBEYRO, 2016, p.12).

                 Contudo, ao contrário de outros diários íntimos, ou escritas de si muito comuns na historia do ocidente desde as Confissões de Santo Agostinho, em Prosas Apátridas não há uma relação de segredo, catarse, ou mesmo amizade entre o diarista e seu diário e sim uma áspera e contraditória relação com a literatura. ” Admiro, portanto, os artistas que criam no sentido de sua vida e não contra a sua vida, os longevos, verdadeiros e jubilosos, que se alimentam de sua própria criação e não fazem dela, como eu, a subtração do que nos era tolerado viver (RIBEYRO, 2016, p. 99).

                 Outra característica da obra é que em muitos trechos ela pode assumir um tom ensaístico ou aforístico, tecendo considerações variadas sobre a condição humana, a vaidade, as contradições da história, e o apego às coisas mundanas. A paixão do colecionador é um dos temas desses breves escritos, nela, assim como em outras paixões, o homem tenta construir um templo para afastar o medo da morte.  Sobretudo após raciocinar muito, o autor concluiu que nada afasta tal sentimento, nem mesmo a escrita e a notoriedade de alguém pode afastar o perigo do total esquecimento que um dia advirá.

                 Todos esses temas citados fazem parte desses pequenos ensaios, aforismos ou diário íntimo, constituintes da prosa de Ribeyro, e mesmo numerados eles não sugerem nenhuma ordem ou hierarquia; a aleatoriedade é um dos pontos fortes do livro tornando-o inclassificável, sua hibridez o situa em um locus de inovação e liberdade, pouco frequente na indústria do livro hodierna.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDELAIRE, CHARLES. O Spleen de Paris. Porto Alegre: L&PM, 2016.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano,vol 1. Petropólis: Vozes, 2010.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

RIBEYRO, Julio Ramón. La Tentación del Fracaso. Madri: Seix Barral, 2003.

______    Prosas Apátridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
_______. Los Gallinazos sin plumas. Disponível em: <https://docelibros.files.wordpress.com/2012/05/julio-ramocc81n-ribeyro-11-cuentos.pdf> Acesso em: 25 de julho de 2017.



[1] Graduado em Filosofia pela UFPR,  Doutor em Literatura pela UFSC possuí Pós- doutorando pela Univerirsidade do Minho- Portugal. Professor do Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade, email: marceloalcaraz1969@gmail.com

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