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terça-feira, 28 de maio de 2019

Trechos de “Romance odiado”

 Paulo Sandrini *

 
XII.

A partir de agora, tudo é motivo para um exorcismo ao pavor da morte, ao medo da dor. Não sei se cairei no bisturi. Em sessões de quimioterapia, radioterapia, essas canalhices que nos fazem sofrer e mesmo assim nos deixam embalados de presente para a morte, com lacinho e cartãozinho de dedicatória e tudo. 

Sou uma espécie de Mario Levrero, o uruguaio que se disse transformado em um canalha, que abandonou por completo toda pretensão espiritual. Eu, de modo distinto ao dele, passei tempo me dedicando também a ganhar dinheiro (e Levrero ganhou pouco, claro; eu, não), e não tive de trabalhar em um escritório em Buenos Aires. Ganhei escrevendo livros sem grandes intenções de transformação (abandonei como Levrero a pretensão espiritual). Escrevi romances dramáticos, mas todos foram dramas falsos. Se a literatura pode ter algo de muito, muito falso, a mais falsa das falsidades é quando um escritor escreve um drama sem senti-lo, sem ter nesse drama algo que se identifique realmente com ele, agindo apenas como um ferreiro que forja o metal, que depois de resfriado recebe um fio bem cortante que vai machucar a alma alheia, mas nunca, nunca a de quem escreveu, de quem forjou esse metal frio e afiado do falso drama. Isso é o que sou: um falso drama. Sou daqueles que sempre postergam o ato honesto da confissão. 

Fato é que, agora, me ponho a procrastinar não apenas a escrita mas sobretudo o conhecimento dos resultados dos exames que Berrini tem em mãos. Exorcizar o pavor da morte. É isso. Quero evitar médicos, análises, consultórios, salas de cirurgia e enfermeiros, mesmo que tenha algo grave a ser extirpado de mim. Lembrando outra vez Levrero em seu “Diário de um canalha”, quero me livrar desse processo infalível diante do qual serei transformado em um objeto apenas um pouco mais que material. E uma vez que a sociedade, diz Levrero, ou parte da sociedade perde a noção de alma, ou de espírito, tratando o ser vivo como puramente material, mais adiante a tortura e o crime advêm quase que naturalmente, como resultado. Que mal há em despedaçar um objeto?

Por outro lado, soo a uma besta paradoxal, que fala em espírito e exalta Cioran. Entre Levrero e Cioran? Fico com a desilusão destruidora dos dois. Sou apenas um dos diluidores de suas ideias, e não tenho nada de verdadeiro. Não penei como escritor, não tive de passar anos, até o fim da vida, comendo no bandejão da Sorbonne, como Cioran, para não passar fome. Nem tive de fazer de tudo para ganhar a vida como Levrero. Sou um sortudo. Apenas um sortudo que paradoxalmente se deu mal por não enfrentar uma escrita mais comprometida (ao menos comigo mesmo) e por não contar aquilo que realmente vem de mim. Sou um impostor. Dos piores.

Amanhã, ligarei para Mariana, para acertar minha ida até seu país de conto de fadas e certamente de enfado.

Londres amanhece brumosa, como convém. Vou caminhando, cortando parques e ruas vazias do sul londrino. Depois, tomo um táxi e desço na rua Oxford, que hoje se parece a qualquer região comercial de uma cidade grande qualquer. As mesmas lojas, as mesmas marcas, vitrines desestimulantes e restaurantes de fast food. O charme a mais, no momento, são as lojinhas de alimentos saudáveis que proliferam por aqui. Mas esse conceito de saúde me parece o mais doentio possível, pois nada nos pode salvar, na maioria das vezes, de nos sentarmos para mastigar, solitariamente, nossos reveses em restaurantes repletos de boas intenções, e que, apesar dos ingredientes saudáveis, nos alimentam de pura amargura e ansiedade. 

Pelas calçadas tumultuadas, estrangeiros e britânicos levam no peito frases em inglês. Tudo se iguala. O Ocidente aniquila tudo e todos. E o Ocidente vem fabricado, agora, da China. É uma nova civilização: Sino-Ocidental. O mundo já não é diferente, em todos os lugares é o mais do mesmo. Tudo é visível, tudo é visto em qualquer parte. Ao mesmo tempo, a possibilidade de ver algo com profundidade desvanece no momento mesmo em que começamos a tentar ver, pois sempre surge algo para que deixemos de lado o que estamos observando para já nos colocarmos atrasados na tentativa de apreender alguma novidade. O planeta Global é cansativo. A Babel turística de Londres é inebriante; por outro lado, a Palavra como ponte real entre todos esses seres distraídos caminhando pelas cidades cai no ostracismo. Em Londres, todos olham vitrines, mas quase ninguém se encoraja a olhar nos rostos. Basta olhar as superfícies.  Os olhares penetrantes se resumem a atravessar os vidros das vitrines. É a profundidade máxima que se pode atingir. Seguimos num caminho que certamente dará na exclusão inexorável do olhar. E ao olhar com dedicação, entrega, afeto e outras paixões mais convulsivas, que alteram nossa percepção, resta-nos ter consciência de que isso vai perdendo suas nuances e matizes mínimos; e assim os olhos, mesmo sem cerrar as pálpebras, se fecham.

XIII.

Em Londres me ponho a refletir sobre a duração do tempo quando estamos em viagem. Dois dias aqui e me parecem muito mais, como se num curto intervalo houvesse se esgotado o espaço da cidade. E olha que fiz pouco por aqui.  Uma fração de hora ganha o status de um Dia Inteiro, coisas que fiz há pouco parecem ter acontecido ontem ou anteontem. Alguns defendem que a vida contemporânea comprime o tempo, deixa-o mais rápido e os dias são mais curtos, os meses e os anos. Mas tenho outra sensação; uma hora aqui, sobretudo em viagem, em deslocamento, parece durar muito mais, há um retrocesso no tempo que me dá chances de viver mais de um dia em somente um dia.

            A ausência de Mariana me aflige. Ando por Londres como se andasse pela terra devastada do poema de Eliot. Em meio à multidão, meu vazio existencial me agride ainda mais. Estou esperando pelo Grande Nada. Sinto dores, agora mais fortes. Pode ser algo que piore com o frio. Ou pode ser mesmo o frio que chega com a morte. Vou caminhando, esbarrando por vezes em mulheres de burcas negras que saem correndo das lojas de grife, abarrotadas de sacolas, e entram tão rápido quanto saíram de grandes carros de luxo. O petróleo negro. A burca negra. O petróleo que faz com que as de burcas negras comprem tudo o que há nesse buraco negro que é o comércio de luxo. Todo esse negro que vem em minha mente piora como o negror do céu londrino. Tudo é úmido e cinza escuro. As pessoas estão cinzas. Eu me sinto aflito. É a falta de contato. A falta da fala. Sinto ainda mais isso aqui, neste lugar em que quase ninguém fala minha língua. Em meu país, os que falam minha língua geralmente não me interessam. Tento fugir da minha misantropia aqui, em Londres. Talvez seja a pior escolha. Mariana está me deixando no vazio, no escuro. Tínhamos combinado. Eu vou pra lá depois de amanhã. E ela nada de entrar em contato. Assim mesmo, vou. Tenho o endereço e Liubliana não é Moscou.  Me sinto péssimo. Tudo para o que olho me aflige. Uma espécie de pânico. De temor de chegar ao fim tendo feito muito pouco por minhas relações afetivas. Sempre fui um hedonista. Sempre um calhorda, canalha, mentiroso ficcional. Na verdade, o que vem tomando conta de mim nos últimos tempos é o desespero. A solidão máxima. Precisava encontrar Bertolt, mas ele não pode sair do trabalho. Assim mesmo ligo, e enquanto procuro o número dele na agenda do celular, mais uma vez me lembro de Cioran, sempre o maldito Cioran, mas desta vez, lembro-o por um de seus lados, se assim devo dizer, não pessimista.

            Lembro-me de ele ter comentado uma vez numa entrevista sobre suas visitas aos cemitérios e sobre a consciência do Nada. Diz que uma vez encontrou uma moça conhecida e ela estava desesperada por conta de um problema afetivo. Então ele lhe sugeriu que visitasse o cemitério de Montparnasse, e ficasse por ali um tempinho, com isso veria que sua tristeza iria parecer tolerável. Ir ao cemitério, segundo o filósofo romeno, é melhor do que consultar um médico, é uma lição de sabedoria praticamente automática. E completa, perguntando o que se pode fazer por uma pessoa em desespero profundo. Nada ou mais ou menos nada, ele mesmo responde. O único modo de suportar o vazio do desespero é ter essa consciência do Nada. Se não fizermos assim, a vida não pode ser suportável. Com a consciência do Nada, tudo que nos acontece ganha proporção normal e assim deixa de assumir proporções dementes que são os traços marcantes da exageração em momentos de desespero.
 
XX.

Não tive coragem. Deixei-a me esperando. Isso, se ela foi realmente ao local combinado. Ela já é o passado de uma relação promissora. Ela é o medo de que eu tanto necessitava. O medo que me faz ir adiante para logo voltar ao lugar de origem. Ela é a encarnação de várias outras situações me dizendo que sempre haverá desencontros. Frustrações. Me dizendo que as buscas nunca se concretizam. É como um manual de autoajuda ao contrário. A vida é sempre uma busca ansiosa sem ponto de chegada. Inexaurível. A vida é a insônia. O tempo lento e dilatado das amarguras e esperas por momentos mais sãos que, se chegarem, vão desaparecer num átimo de segundo, fazendo cócegas em nossas mãos, sem nem dizer adeus, tudo para provar que nunca estiveram por perto.  E logo virão novas ansiedades. Todas as noites serão longas. Todas as esperas te perseguirão. Até que você todo seja constituído de um tempo que se esgota sem pressa, um tempo obeso de possibilidades que se transformará em seu sistema nervoso; um tempo morno que aquecerá e se tornará sua carne resignada, um tempo espesso de demoras que constituirá sua ossatura.  Você: sobrepeso de possibilidades. Você: carne morna e resignada. Você: esqueleto de esperas óbvias jamais concretizadas.  Você e o tempo rastejante. Você e o tempo-verme. O tempo longo. O tempo-trem que range suas rodas numa estrada de ferro rumo ao leste. O leste lento.  A peste negra do tempo esticando-se, esticando suas noites. Transformando seus dias em noites. Suas luzes sempre acesas. Você, sempre alerta. E se prolongando junto ao tempo para que as esperanças se mantenham. Para que a vida se mantenha. Eterna e imutável. Como você nunca quis. Como você sempre quis. Assim, fugindo dos encontros. Torcendo para que deem errado. Fazendo com que tudo dê errado. E mesmo quando é para dar certo, você, inconscientemente, sabe: não vai dar certo. Tudo continuará como espera. E assim você seguirá. Sendo seu próprio tempo, confundindo-se com ele, com a sua própria espera, sua própria demora em chegar, sua própria eternidade prolongando uma vida lenta, sem nenhum risco. Sem o risco dos encontros que afligem, acariciam e arranham a pele seca, escamosa, da sua vida de serpente-tempo-rastejante.


* Paulo Sandrini é escritor, autor de livros de contos e romances, entre eles “O estranho hábito de dormir em pé” (2003), “Osculum obscenum” (2008) e “Peixes coloridos de alto-mar” (2017). É editor da Kafka Edições, mestre e doutor em Letras pela UFPR. Atualmente é professor do programa de Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade (Curitiba).

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