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quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Questões de gênero e sexualidade em Otelo: o mouro de Veneza

Profa. Dra Anna Stegh Camati

O texto shakespeariano Otelo permite diversas leituras, tanto é que pode ser interpretado a favor e contra as ideologias sexistas. As complexas relações entre os sexos, no universo textual da peça, têm sido investigadas pela crítica feminista que tende a examinar a posição da mulher como sujeito e/ou objeto, e sua atuação na sociedade patriarcal à época.
As considerações teóricas de Juliet Dusinberre, no livro intitulado Shakespeare and the Nature of Women (Shakespeare e a natureza das mulheres), cuja primeira edição foi publicada em 1975, inaugurou a crítica feminista shakespeariana que se debruçou sobre uma longa linhagem de discursos masculinos a respeito das persongens femininas de Shakespeare.
Dusinberre afirma que a profunda compreensão da natureza humana permitiu a Shakespeare investigar “paixões sem preconceitos de raça ou gênero” (DUSINBERRE, 1996, p. 130) , apresentando questões éticas e morais sob múltiplos pontos de vista, subvertendo, assim, as teorias de oposições binárias, entre elas casamento/ prostituição e amor/desejo. Nesse sentido, para ilustrar as inquietações do início da modernidade, a autora menciona um incidente em Otelo, especificamente a cena em que o mouro se refere a Desdêmona como prostituta:

Shakespeare é o único dramaturgo que entendia o sentido da palavra comedimento, tão cara ao código moral dos Puritanos, ou seja, o comedimento era uma maneira de diferenciar o casamento da prostituição. [...] Quando os Puritanos pregavam sexo moderado no matrimônio, dissociando o casamento do calor do bordel, objetivavam deixar clara a sua convicção de que a posição da esposa não tinha relação com o comércio que envolvia o ofício das meretrizes. [...] Segundo os Puritanos, o casamento somente oferecia a uma mulher uma vida melhor do que o meretrício, se o seu cônjuge a tratasse como parceira e não como propriedade. Na peça de Shakespeare, o homem tem o direito de tratar com violência sua amante, porque ela é um objeto que ele comprou. Quando Otelo bate em Desdêmona, isso choca Ludovico que exclama: – ‘Não acredito, ele bate na esposa?’ – porque esse ato nega a ela a dignidade de uma esposa. Algumas produções cênicas, sublinham essa questão ao fazer Cássio agredir físicamente sua amante Bianca que o persegue e não o deixa em paz. (DUSINBERRE, 1996, p. 119-120 e 126)

Valerie Wayne, no artigo “Historical Differences: Mysogyny and Othello” (“Diferenças históricas: Misoginia e Otelo”), argumenta que Shakespeare evoca as inquietações culturais à época na peça e explora as tensões entre três tipos de discurso: o residual, o dominante e o emergente.
Os discursos do início da modernidade, de acordo com Wayne, continuavam incorporando preconceitos medievais residuais, mostrando que, em grande proporção, havia inquietações masculinas a respeito do desejo e da sexualidade femininas, como atesta o trecho misoginista medieval de O romance da rosa, de Guillaume de Lorris e Jean de Meun, citado por Wayne:

Todas as mulheres são, serão, ou foram meretrizes, de fato ou em pensamento e, nesse sentido, nenhum homem é capaz de refrear os seus apetites sexuais. Todas as mulheres têm o privilégio de serem senhoras de seus desejos. Isso porque nenhuma violência física ou aprimoramento moral é capaz de mudar as inclinações femininas; assim, se algum homem conseguisse mudá-las ele teria soberania sobre seus corpos. (Citado em WAYNE, 1991, p. 156)

Wayne argumenta que a conversa rude de Iago com Emília e Desdêmona, na chegada a Chipre (2.1), associa o vilão “com o discurso residual misógino da Renascença” (WAYNE, 1991, p. 154). Ela esclarece que as provocações de Iago, que insultam as mulheres, remetem a uma retórica medieval encontrada em provérbios, romances de amor cortês, livros de conduta e escritos de clérigos, adaptada por Shakespeare com propósitos específicos em Otelo, oferecendo evidências de que muitos pensamentos misóginos residuais ainda se mantiveram ativos na formação do processo cultural do início da modernidade para restringir as atividades da mulher e refrear seus desejos sexuais.
Na minha opinião, o solilóquio de Otelo, na terceira cena do terceiro ato, que expressa sua agitação psicológica após ouvir as calúnias e insinuações maldosas de Iago, é construído de acordo com discursos residuais misóginos. O excerto de O romance da rosa, citado acima, reverbera no discurso de Otelo quando lamenta não ser capaz de controlar o apetite sexual de sua mulher:

OTELO

[...] Casamento
Maldito, que nos dá tais criaturas,
Mas não seus apetites. Antes ser
Um sapo no vapor de um calabouço
Que ter só parte da coisa que amo
Pr’uso dos outros. (3.3)
  
Esse solilóquio mostra que Otelo não considera Desdêmona como sua legítima parceira, como em teoria pregavam os Puritanos, visto que ele lamenta não ter controle sobre seus desejos sexuais e se refere a ela em termos de posse: a coisa que amo (the thing I love). Segundo a crítica feminista, essas palavras de Otelo relativizam o seu discurso final em que explica que matou Desdêmona por amá-la em demasia: “Falem só? De alguém que, não sabendo amar, amou demais” (5.2).
Por outro lado, Wayne (1991) observa que o discurso alternativo de Emília, sobre a questão do desejo da mulher (4.3), mostra que Shakespeare também inclui em seu texto os discursos emergentes que defendem condições de igualdade para as mulheres a partir do argumento da “similaridade entre os sexos” (WAYNE, 1991, p. 167):

EMÍLIA

[…] Saibam os os homens,
Que nós temos sentidos, que nós vemos,
Cheiramos, separamos doce e amargo,
Assim como os maridos. O que fazem
Os que nos trocam por outras? Só brincam?
Creio que sim. A causa foi paixão?
Creio que sim. Por fraqueza é que erram?
É também. E não temos nós paixões?
E fome de brincar, fracas, como eles?
Pois que nos usem muito bem, e tomem tino.
Os nossos erros vêm do seu ensino. (4.3)

O discurso revolucionário de Emília alude ao padrão duplo (dois pesos e duas medidas) que permite o adultério do homem e repudia o mesmo procedimento em relação à mulher, uma ideologia persistente que equaciona a contenção sexual da mulher como uma virtude e o desejo sexual como um vício. Assim, por meio de estratégias diversas, Shakespeare questiona os valores e as ortodoxias prevalecentes à época em que viveu e escreveu.

REFERÊNCIAS
DUSINBERRE, Juliet. Women as Property. In: _____. Shakespeare and the Nature of Women. London: Macmillan, 1996, p. 110-136.

SHAKESPEARE, William. Othello. Arden Shakespeare. Edited by E. A. J. Honigmann. Third Series. London: Methuen, 1997.
SHAKESPEARE, William. Otelo. In: _____. Teatro Completo. William Shakespeare: tragédias e comédias sombrias. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 545-694.

WAYNE, Valerie. Historical Differences: Misogyny and Othello. In: _____. (Ed.). The Matter of Difference: Materialist Feminist Criticism of Shakespeare. Ithaca NY: Cornell University Press, 1991, p. 153-179.

Obs. O artigo completo, intitulado “Otelo, o mouro de Veneza: o texto de Shakespeare no contexto da era elisabetano-jaimesca” foi publicado no livro O julgamento de Otelo, o mouro de Veneza – edição comemorativa Shakespeare 400 anos/ René Ariel Dotti. Coordenação Daniel Ribeiro Surdi de Avelar. Organização: Angela dos Prazeres e Liana de Camargo Leão. 1ª. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 89-98.

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