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quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O DISCURSO SINCRÉTICO DA CENA DE ABERTURA DA ÓPERA OTELLO, DE GIUSEPPE VERDI

                                      
Autora: Silvandra Mara Henrique Rodrigues 
Programa de Iniciação Científica de Letras
UNIANDRADE

Orientadora: Profa. Dra. Anna Stegh Camati
UNIANDRADE

O intuito deste texto é o de abordar o discurso sincrético e seus efeitos musicais na cena I da ópera Otello (1887), de Giuseppe Verdi (1813-1901), baseada no texto homônimo (1603), de William Shakespeare (1564-1616).
Clüver (2006, p. 20) ensina que um discurso sincrético “possui dois signos ou mais sistemas de signos e/ou midias de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos  de seus signos se tornam inseparáveis”. Nesse sentido, entende-se a  ópera como um gênero musical no qual a música está conectada à ação dramática expressa pelo texto, ou libreto. Este, por sua vez, tem características de textos curtos já que a música não possui a velocidade e habilidade verbal da linguagem, portanto a ópera requer menos palavras do que o necessário para uma peça de mesma extensão (WEISSTEIN, citado em HUTCHEON, 2011, p. 75).
Deste modo, considera-se a ópera uma manifestação cultural plurimidiática, a qual. de acordo com Camati (2018), reúne várias mídias em um mesmo espaço, como a música, o teatro, a dança, a literatura e as artes plásticas. Para Hutcheon “adaptação é a força vital da ópera e tem sido assim desde o início dessa forma de arte na Itália no final do século XVI”. (HUTCHEON, 2017, p. 305, tradução nossa)[1].
Assim as estruturas musicais criadas por Giuseppe Verdi, na ópera Otello, se fundem ao texto de Arrigo Boito (1842-1918), para expressarem significados precisos, como a construção gramatical metafórica e criar um meio psicológico no qual a música revela emoções, sendo mais efetiva do que palavras. O libreto revela um entrosamento com a peça shakespeariana, no qual, apesar do processo de síntese, os períodos fundamentais do texto literário foram mantidos, o que fez com que a escolha do libretista fosse determinante para o compositor. Pois, a união da música de Verdi e o texto de Boito “representam o apogeu do drama lírico e da ópera-cômica italiana” (CANDÉ, 2001, p. 96)  
A estratégia musical utilizada pelo compositor italiano revela nuances carregada de contrastes, deste modo foi capaz de demonstrar os sentimentos das personagens de forma perfeita, criando uma declamação melódica original da Língua Italiana, ampliando a orquestra e fazendo-a executar um papel dramático extraordinário.(CANDÉ, 2001, p. 97)
Assim, a análise a seguir será regida pelo conceito de plurimidialidade do teatro musical, o qual, segundo Picon-Vallin (2018, p. 20) designa “todas as produções em que se tenta integrar a música, texto e elementos visuais”.
Na ópera Otello, Verdi utiliza logo no início, na cena I, o recurso de trêmolos – repetição veloz de uma ou mais notas quando se deseja maior volume, utilizando-se desse recurso nas flautas, cordas e percussão e criando uma instabilidade rítmica utilizando síncopes nos sopros – isso produz o efeito de deslocamento das acentuações naturais e resulta numa tensão causada pela ausência do acento esperado.  Assim, obteve-se o efeito de tempestade, passando aos espectadores uma sensação de ansiedade e medo ao avistarem o navio que se aproximava. A música reflete e amplifica o drama de conflitos das personagens, onde sentimentos como a inveja, o ciúme, a mentira são sublinhados pela música para acentuar a textura do enredo teatral. A ansiedade é expressa por uma série de cromatismos – ou seja, notas sucessivas – com instrumentos agudos ( flautas e oboés), alternando  dinâmica suave que logo passam a ser escalas rápidas numa dinâmica fortíssima, reforçada com as quiálteras – divisões irregulares – nos metais e com arpejos – execução rápida e sucessiva das notas de um acorde – nas cordas, tudo isso permeado por um pedal de órgão numa tessitura grave que permeia toda a cena. Deste modo, o compositor cria uma tensão melódica, ao passo que o texto breve, irregular e intenso de Boito, com a execução do coro nas frases intercaladas por dois grupos – Una vela! (grupo I), Una vela! (grupo II), Un vessillo! (grupo I), Un vessillo! (grupo II), amplia a sensação de ansiedade.
O legato do início, logo se transforma numa articulação curta (stacatto) e cromática para os instrumentos de sopros, com arpejos ligados nos instrumentos de cordas e a dinâmica passa para pianíssimo (intensidade sonora mínima, quase inaudível), o coro canta colcheias pontuadas que, também, transmitem ansiedade, criando contrapontos entre instrumentos com frases ligadas em meio a vozes do coro. Esse contraste diatônico e cromático, dinâmicas suaves e fortes, articulações ligadas e curtas são o pano de fundo para toda cena I, indicando um sentimento de movimento e passagem. A abertura é, inesperadamente, crescente (Lampi! tuoni! gorghi! turbi tempestosi e fulmini!). Da tempestade e da possível derrota passa-se à salvação e à festa da vitória (Esultate! L'orgoglio musulmano sepolto è in mar; nostra e del ciel è gloria! Dopo l'armi lo vinse l'uragano). Com isso, os sentimentos expressados na Cena I, demonstram contrapontos da mudança de sentimentos entre o medo e o perigo da tempestade convertendo-se em canto de alegria e celebração da vitória sobre os turcos, assim como o sentimento de inveja e o desejo que Rodrigo possui sobre a possibilidade do barco afundar e, com isso, resultar a morte de Otello, não ser concretizado.
A análise deste pequeno trecho demonstra que Verdi, ao compor Otello, eliminou a ária considerada padrão, para a época, e as formas de conjunto as quais eram produzidas as óperas, deste modo o compositor criou uma forma estilística diferenciada. A música de Otello se move de uma cena para outra com muita dramaticidade, raramente parando, permitindo que uma melodia se desenvolva e nos mova rapidamente de um fragmento melódico para outro em toda a peça.  Assim, causa no público uma sensação de desenvolvimento contínuo, pois ao não permitir que o espectador ouça uma música resolvida em sua tônica, ele cria a sensação de constante mobilidade para a frente. 
Toda a ópera foi construída passando de um motivo melodioso para outro como uma “costura melódica”. Com isso, Verdi reserva as composições musicais genuinamente elevadas e “esculpidas” no clímax da peça, recompensando o ouvinte por manter toda a atenção nesse processo motivacional único.

Nota:
[1] Adaptation is the lifeblood of opera and has been so since that art form's inception in Italy in the late sixteenth century. 


REFERÊNCIAS
CAMATI, Anna Stegh. Sonho de uma noite de verão: do texto de Shakespeare à ópera de Benjamin Britten. Tradução em Revista: Puc Rio, Diálogos com Shakespeare: adaptações, apropriações, releituras, n. 25, p. 50-64, 2018/2.
CANDÉ, Roland de. História universal da música. Trad. Eduardo Brandão: revisão da trad. Marina Appenzeller. 2. ed.  São Paulo: Martins Fontes, 2001.
CLÜVER, Claus. Inter textus/ Inter artes / Inter media. Tradução do alemão de Elcio Loureiro Cornelsen. AletriA: Revista de Estudos de Literatura – Intermidialidade, v.14, p. 11-41, jul./dez. 2006. 
DOURADO, Henrique Autran. O arco dos instrumentos de cordas: breve histórico, suas escolas e golpes de arco. São Paulo: Irmãos Vitale, 2009.
HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011. 
HUTCHEON, L.; HUTCHEON, M. Adaptation and Opera. In: LEITCH, Thomas (Ed.). The Oxford Handbook of Adaptation Studies. Oxford and New York: Oxford University Press, 2017, p. 305-323.  
LEITCH, Thomas. (Ed.). The Oxford Handbook of Adaptation Studies. Oxford and New York: Oxford University Press, 2017.
MED, Bohumil. Teoria da música. Ed. 4 rev. e ampl. Brasilia, DF: Musimed, 1996.
PICON-VALLIN, B. A cena em ensaios. Trad. Fátima Saadi, Cláudia Fares e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2008. 
VERDI, Giuseppe. Otello: in Full Score. Opera. Libretto by Arrigo Boito, based on the play by Shakespeare. Reprint originally published. Milan: Ricord, 1986.

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