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terça-feira, 16 de abril de 2013

A Canção de Rolando e o imaginário popular brasileiro



Professora Edna da Silva Polese

A Canção de Rolando foi redigida provavelmente entre os anos 1098 e 1100. É anônima, assinada pelo copista Turoldus e narra acontecimentos ocorridos no ano 778. Acontecimentos bélicos da famosa batalha de Roncesvales, onde Carlos Magno e seus dozes pares enfrentaram o exército do rei Marsílio, mouro, inimigo da fé cristã e dos ideais ambicionados por Carlos Magno.
Segundo Carpeaux, na História da Literatura Ocidental, a historiografia francesa distingue três ciclos da epopeia medieval: o Ciclo de Carlos Magno, o Ciclo Bretão e o Ciclo Antigo. Ainda segundo Carpeaux, o chamado Ciclo Antigo representa a sobrevivência das epopeias gregas e romanas. A Idade Média ignorava as epopeias homéricas:
Segundo a opinião de certos críticos estrangeiros, os franceses exageraram o valor da Chanson de Roland;  a geste não poderia comparar-se às grandes epopeias populares das outras nações. Essa opinião não se justifica. É verdade que a Chanson de Roland carece de arte consciente, de “poesia feita”, mas as outras epopeias populares estão no mesmo caso. O valor dessas produções reside na capacidade de representar uma nação, uma época. Com a nação  francesa dos tempos posteriores, nação de patriotas-cristãos, a Chanson de Roland pouco tem a ver. Roland e os outros personagens revelam devoção cristã; porém, esta não é motivo da sua ação. E patriotismo, no sentido moderno, a Idade Média não o conhececeu. A “Dulce France”, a palavra chave do poema, só revela que o último redator do texto atual conhecia Virgílio, mas o espírito da obra não é virgiliano. (...) A Chanson de Roland representa a época em que os franceses estavam mal cristianizados, e, por assim dizer, ainda não eram franceses. Eram francos. Assim como no Poema de mio Cid castelhano subsiste o espírito visigótico, e assim como no Nibelungenlied alemão subsiste o espírito escandinavo, assim também a Chanson de Roland pertence à época de transição entre a barbaria germânica e a civilização francesa. (...) Na verdade, a Chanson de Roland é um dos grandes e um dos mais fortes poemas bárbaros da literatura universal. (Carpeaux, p.175-176)
De acordo com Auerbach, em Mímesis, o poema não apresenta explicações sobre os acontecimentos enigmáticos que demonstra. Tudo é embasado nos princípios desse quadro estreito da camada social: o cavalheiresco desejo de lutar, o conceito de honra, a mútua fidelidade entre companheiros de armas, a comunidade de castas, o dogma cristão, a divisão do justo e do injusto entre fiéis e infiéis. (p.87)
A história de Carlos Magno, assim com o poema que o eternizou é parte da expressão maior da fundação da Europa, seus povos, suas lutas, suas conquistas, sua identidade, enfim. Mas não ficou restrita a esse continente. Atravessou o Atlântico e foi uma das primeiras leituras dos povos que se instalaram no Brasil. Luis da Câmara Cascudo registra no Dicionário de Folclore Brasileiro quando ocorreram as primeiras traduções, edições e divulgação do poema na Europa, em Portugal e o ano que supostamente veio para o Brasil, provavelmente no ano de 1732. Informa ainda sobre a popularidade da obra: “Volume popularíssimo em Portugal e Brasil, leitura indispensável por todo o sertão, inúmeras vezes reimpresso e tendo ainda o seu público leitor fiel e devotado.”
A partir daí dá-se um segundo movimento: a popularidade da narrativa, dos acontecimentos, do imaginário que se cria em volta da figura do rei e dos seus cavaleiros imprimiria aos povos nordestinos uma nova reconfiguração. A literatura de cordel se apropriará do tema. No espaço rural será a narrativa que embalará os sonhos de gerações.
É a partir da reconfiguração da batalha de Roncesvales que se organiza a cavalhadas, festas em que cavaleiros se vestem de vermelho e azul para representaram os cristãos e os mouros. Organizam torneios que rememoram práticas medievais. Esse tipo de festa ocorre em todo o Brasil, oriunda da tradição portuguesa, mas inspirada principalmente nos acontecimentos da famosa batalha.
É da famosa batalha, ainda, que Ariano Suassuna preenche as ações de sua obra mais significativa: o Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e do Volta. Quaderna, seus personagem principal, organiza as cavalhadas, veste-se como cavaleiro medieval e ambiciona um reino, um império, tentando equiparar-se ao famoso imperador franco.  
A tradução de Pierre Jonin traz notas e comentários do organizador que iluminam essa veneração à narrativa por parte dos brasileiros: “Viajando pelo Brasil em 1977, um francês chega a um vilarejo muito isolado do Rio Grande do Norte. Um camponês bastante idoso, quando soube que eu vinha da França, pediu-me notícias de Rolando. Toda noite, os camponeses nordestinos entoam cantinelas: a história dos doze pares de Carlos Magno, do traidor Ganelon, de Amadis de Gaula. O camponês estava preocupado. A discussão entre Roldão e Oliveiros não lhe dizia nada de bom. Ele não apostaria muito na felicidade da bela Alda.”
Atravessando séculos e espaços, a narrativa de Rolando e seus pares preenche o imaginário da cultura popular brasileira, através de seus versos e suas cantigas, de suas festas e de suas rodas de história, alocando mais uma peça ao intenso e movimento mosaico da identidade brasileira.



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