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sábado, 7 de setembro de 2013

Por que ler romance policial?


 

Prof.ª Mail Marques Azevedo

Fui procurada há alguns dias pela equipe de TV da             UFPR em busca de respostas a algumas perguntas sobre o romance policial. A jovem repórter, aluna do curso de jornalismo, fez perguntas e considerações reveladoras de uma preocupação: a leitura de histórias policiais deve ser vista como sinal de mau gosto literário, como se fosse um pecado cometido contra a arte culta?

             De fato, o romance policial é considerado literatura de entretenimento, parte da cultura de massa, que se contrapõe à cultura de proposta, na designação de Umberto Eco. Esta se distingue pelo critério da originalidade e por nos oferecer uma visão de mundo singular e inconfundível. Já a fruição de uma obra da cultura popular se esgota com a leitura e não leva à reflexão.

 Por outro lado, há muito a dizer em defesa do gênero. Há intelectuais e escritores “sérios” que leem romances policiais ou que se aventuraram no gênero. O critico marxista Ernest Mandel, por exemplo, confessa que gosta de ler romances policiais. Antigamente achava que eram simplesmente diversões escapistas: “enquanto os lemos não pesamos em outras coisas; quando terminamos a leitura não pensamos mais neles e pronto”, diz ele. O fato é que milhões de pessoas, em dezenas de países leem romance policial, o que torna o grande sucesso do gênero literário um fenômeno social. Daí o interesse de Mandel em fazer o estudo desse fenômeno, em Delicias do crime,uma história social do romance policial. Aos que consideram frívolo para um marxista perder tempo analisando romances policiais, Mandel oferece a explicaçãode que o materialismo histórico pode – e deve – se concentrar em todos os fenômenos sociais, por mais irrelevantes que pareçam.

Grandes nomes da literatura mundial praticaram o gênero desde que Edgar Allan Poe escreveu seus contos deraciocination que estabelecem certos parâmetros para o que viria a ser a clássica história de detetive, que ele define em “Os crimes da Rua Morgue” e “A carta roubada”. Consta de quatro aspectos:

1.      Situação. A clássica história de detetive tem início com um crime não resolvido e se desenvolve rumo à solução do mistério.

2.      Modelo da ação. Na definição de Poe, o centro de interesse da fórmula dos contos de raciocínio é a investigação e a solução do crime pelo detetive.

3.      Personagens e relações. A história requer quatro papéis principais: a) a vítima; b) o criminoso; c) o detetive; d) aqueles que são ameaçados pelo crime, mas são incapazes de solucioná-lo.

Apesar dos meandros do enredo, existe uma certeza: o criminoso será descoberto e o caso solucionado. Esta certeza, que não corresponde ao que acontece no mundo factual, confere à narrativa policial características fantásticas, segundo Eric Rabkin, que concebe o fantástico como a subversão das regras básicas do mundo narrativo. Quanto mais frequentes forem as subversões das expectativas do leitor tanto mais fantástica se torna a narrativa.

Com efeito, algumas das melhores histórias policiais são aquelas que subvertem as convenções do gênero. É o caso do romance Agosto, de Rubem Fonseca, considerado um dos melhores do autor, em que o detetive, neste caso um comissário de polícia, é morto pelo assassino no desfecho da trama. É notável nos círculos acadêmicos o caso do dramaturgo suíço Friedrich Durrenmatt (1921-1990), autor de obras-primas do drama no século XX, que escreveu alguns romances policiais de grande impacto. São romances policiais porque têm como foco central a elucidação de um crime, mas fogem totalmente das fórmulas mencionadas, designados pela crítica como “romances policiais paradoxais”. [*]

Osdez negrinhos de Agatha Christie,embora um clássico da literatura policial, étambém um desvio do modelo tradicional da “narrativa de enigma”, apontado por Todorov: 1) história um: a história do crime apresentada ao leitor como fait accompli.; 2) história dois: a busca pelo assassino, que estabelece uma ligação entre o leitor e o processo de solução do crime. A informação é fornecida de maneira clara e direta, permitindo ao leitor chegar a uma conclusão. O narrador – que não é o próprio detetive – funciona como simples observador, alguém que relata acontecimentos, cujo significado geralmente não entende. 

            Como é do conhecimento dos iniciados, Os dez negrinhos é caso único no cânone da “Rainha do Crime”: as mortes são anunciadas de antemão e ocorrem na ordem e maneira indicadas pelas palavras de uma canção infantil. Não há detetives e a solução dos crimes também é sui generis: o próprio assassino, uma das dez vítimas em potencial, incomunicáveis em uma ilha, descreve detalhadamente motivos e ações, e coloca o manuscrito em uma garrafa que joga no mar. A garrafa, evidentemente, é encontrada pela polícia!!! Pelo menos neste ponto a história segue as regras: tem de haver uma solução para o mistério, mesmo que improvável e inverossímil, e que deve ser revelada em um momento dramático.

            Em histórias de detetives tradicionais, portanto, os problemas da vida são reduzidos a um único: um crime foi cometido e deve ser solucionado. Uma vez solucionado, o problema desaparece e a vida retoma o curso normal. À semelhança de narrativas fantásticas, que subvertem as regras básicas do real, quer da realidade interna do texto ou da realidade externa ao texto, a trama do romance policial acaba por restaurar a ordem. Talvez seja essa a razão principal da popularidade continuada do gênero.


 

 

 



[*] Ver no site da UFPR a dissertação de Ivan Sousa Rocha, intituladaA morte e o renascimento do romance policial segundo Friedrich Durrenmatt.

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