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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O BANHO DE LAMA COMO RITUAL DE PASSAGEM E DE CARNAVALIZAÇÃO
                                                                                                    
Sigrid Renaux   



Festa dos novos universitários: aprovados no vestibular da PUCPR comemoraram ontem com o tradicional banho de lama, em Curitiba. A festa, que começou por volta das 14 horas, também contou com banho de espuma e trio elétrico. (Gazeta do Povo, 4 de novembro de 2014, p.1).

Na fotografia acima, pela alegria que expressam esses jovens, rindo e gesticulando com vestes e corpos cobertos de lama, poderíamos concluir que esta tradição do ensino superior brasileiro – o trote do banho de lama como uma forma de inserir os calouros numa nova fase – seria uma maneira de aproximar os calouros dos veteranos, por meio de um “ritual de passagem”. De acordo com Antonio Zuin (UFSCar),  autor de O Trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação,

os candidatos aos cursos das primeiras universidades europeias não podiam frequentar as mesmas salas que os veteranos e, portanto, assistiam às aulas a partir dos "vestíbulos"- local em que eram guardadas as vestimentas dos alunos. "As roupas dos novatos eram retiradas e queimadas, e seus cabelos, raspados. Essas atividades eram justificadas sobretudo pela necessidade de aplicação de medidas profiláticas contra a propagação de doenças" (citado por Marina Dias em “A origem medieval do trote universitário”).

O trote do banho de lama, especificamente, utilizado como “ritual de passagem” pelos universitários veteranos brasileiros, faz parte, portanto, de um simbolismo muito mais amplo. Pois, como é de conhecimento geral, em todas as sociedades primitivas, determinados momentos na vida de seus membros eram marcados por cerimônias especiais, conhecidas como ritos de iniciação ou de passagem. Essas cerimônias, mais do que representarem uma transição particular para o indivíduo, representavam igualmente a sua progressiva aceitação e participação na sociedade na qual estava inserido, tendo, portanto tanto o cunho individual quanto o coletivo.
Basta lembrar, entre outros, os rituais realizados pelos índios pataxós para comemorar a chegada das chuvas, quando faziam o plantio de roças e, ao final do ritual, acontecia um banho de lama e água para purificação do corpo e da mente, num momento de alegria e descontração entre todos, celebrando e lembrando sobre como surgiu o povo Pataxó os filhos da água. http://pt.wikiversity.org/wiki/Wikinativa/Patax%C3%B3. Ou ainda os festivais da lama em Yotsukaido, ao leste de Tóquio, com homens de trajes característicos participando destes festivais, que têm como objetivo desejar boa colheita e boa saúde para os bebês.
Entretanto, existem muitas outras tradições em que os banhos de lama, como cerimônias especiais, têm destaque. Entre elas, dentro da história da cultura, as festividades de tipo carnavalesco. O carnaval, definido por Bakhtin como “forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares” (2005, p. 122), com suas diversas categorias, ações, imagens e locais de festejo, irá acrescentar sua polivalência simbólica a este ritual universitário.
Se o trote é definido como uma “tentativa de ridicularizar calouros, por parte dos veteranos” (HOUAISS), o ritual do banho de lama, ao se inserir dentro das festividades de tipo carnavalesco, concretiza também a “ alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder e qualquer posição hierárquica” (BAKHTIN, 2005, p.124). Pois, assim como a coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval – a principal ação carnavalesca – o banho de lama a que os calouros se submetem de livre vontade, lembra os veteranos de seu próprio banho de lama no ano anterior e aponta para os novos calouros que no próximo ano eles serão os que irão aplicar este trote nos próximos calouros. A brevidade do trote, portanto, como “vida carnavalesca” de um dia, na qual a vida é “desviada de sua ordem habitual”, não apenas estimula o “livre contato familiar” entre estudantes que ainda não se conheciam, nesta “praça pública carnavalesca” onde se encontra a grande fossa cheia de lama.
Os estudantes, ao se banharem na lama – como mistura de terra e água, a lama une o princípio receptivo e matricial (terra) ao princípio dinamizante da mudança e das transformações (água) (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 1973, p.230) –, estão inseridos num ritual  de passagem e de iniciação, mas também de carnavalização, ao manifestarem sua libertação (provisória) do sistema e da ordem da vida comum (os jugos da vida de estudante  preparando-se para o vestibular) que os determinava na vida extracarnavalesca, para usufruirem, por um dia, uma vida carnavalesca.



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