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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A FICÇÃO AUTOBIOGRÁFICA DIANTE DO TEMPO PARA A MORTE: NARRAR OU
 MOSTRAR COMO POSSIBILIDADES DE CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DA VIDA

Edson Ribeiro da Silva (UNIANDRADE)

Paul Ricoeur atrela a narrativa literária àquele ponto da existência em que o ser consciente olha o tempo já transcorrido como sendo uma “distensão da alma” e pode refletir. Narrar o passado representa a possibilidade de construir seu sentido. A narrativa literária sabe disso, como aponta Ricoeur ao dizer que ela não explica o tempo real, mas torna as pessoas reflexivas acerca da verdadeira temporalidade, que é um desafio para o ser consciente. Existe o passado, como distensão, mas também o futuro, como propensão. Diante desse futuro a ser vivido, o ser olha para a limitação do tempo que lhe resta. O futuro é o tempo para a morte, mas é nele, conforme Heidegger, que o ser constrói o sentido da sua existência. A narrativa literária contém exemplos dessa tomada de consciência, pelo narrador, de que olhar para o tempo que se distende, como passado, é forma de construir o sentido inclusive para aquele tempo que resta antes da morte.
Proust é modelar nas páginas finais de Em busca do tempo perdido, ao pensar a literatura como elemento perene diante da mudança. Fazer literatura é reter, pelo sentido e, sobretudo, pela beleza, o fluxo incessante. A ficção autobiográfica coloca-se diante de tal dilema: o tempo para a morte representa a possibilidade de reter a vida. No entanto, as ficções moderna ou pós-moderna assumem o dilema retórico apontado por Booth: narrar ou mostrar.
Ao narrador autobiográfico não basta assumir a posição de adulto que observa e explica o passado distendido. Não basta narrar fazendo uso de uma voz narrativa adulta. Falando sobre a infância, a narrativa oscila entre uma enunciação adulta e uma outra, fingidamente infantil. O texto prefere mostrar a passagem por situações escolhidas como portadoras de conflito e que, consequentemente, implicam na construção da personalidade da personagem. Pode haver um verdadeiro problema. Mas esses conflitos passam, muitas vezes, pelo tipo de problema que Deleuze considera como “falso” ao comentar Bergson: na narrativa literária, o corriqueiro ganha foros de conflito para que, ainda que predomine o comentário, exista uma história sendo narrada.
Em Munro, as personagens vivem situações em que há conflitos, mesmo quando motivados pela rotina. Muitas vezes, a natureza destes é intensa, o que leva a desfechos trágicos. A autora ainda narra situações que se ampliam, causam desconforto, mas que gerariam apenas atmosferas em que um elemento é causa de desequilíbrio, se não fosse a presença da ação que modifica os estados; o fato trágico é uma mão sobre os contos, a garantir que eles contenham história e não apenas comentário, para retomar a terminologia de Weinrich. Em Vilela, ao contrário, essas personagens-crianças estão diante de situações corriqueiras da infância, o que faz com que os contos ganhem um contorno anedótico. O contista prefere que os enredos percam o valor de elementos capazes de mudar um estado durável. Há comentário, há atmosferas, mas existe uma história a ser contada, mesmo corriqueira. Por isso, ela pode parecer o efeito da lembrança de um adulto que talvez narre não à procura de sentidos diante da morte, mas sob o efeito de afecções, como a saudade, ou da noção de pitoresco. Não se pode negar, mesmo quando a possibilidade heideggeriana de produzir sentido a partir da narrativa volta-se para a produção da beleza, antes que à interpretação do real, que é o mesmo impulso provocado pela visão do tempo da morte, diante da possibilidade de produzir algo perene. Tanto o impulso de interpretar o passado, perceptível em Munro, quanto o de gerar processos narrativos altamente literários, em Vilela, são execuções dessa possibilidade de a literatura instaurar-se em outro fluxo temporal, diferente daquele que reduz as pessoas à condição proustiana de fantoches ou as leva à morte. Em ambos, quer-se mostrar, através de recursos que especificam uma enunciação infantil diante de uma situação, seja de forma oral ou escrita, a posição do narrador como ambíguo. Não se trata de uma criança tomando a palavra, mas também não se tem integralmente uma dicção adulta, no plano do fingimento. Às vezes, percebe-se o adulto refletindo; outras vezes, o desnorteamento da voz infantil mostra o conflito, como se concomitante à narração. Exemplos notórios dessa técnica são os contos de Luiz Vilela, em Contos da infância e da adolescência, e os de Alice Munro, em Vida querida. Enquanto o escritor brasileiro persegue a experimentação, a variação nos procedimentos enunciativos fingidos, que faz com que tais contos passem da conversa ao desabafo, da carta à redação escolar, a escritora canadense ratifica, em cada texto, o seu estilo reconhecível, o modo de narrar dos narradores munrianos que contam fatos de um passado real ou fingido, mas que nunca abandonam a condição daquele que olha o tempo distendido para tentar compreendê-lo.
Existe, para Deleuze, uma concomitância entre o tempo passado e o presente; esta se percebe nos contos feitos pelos dois autores abordados. Tal concomitância está contida na imagem deleuzeana do cone como representação do tempo: o vértice contém o estreito presente em que se narra (um tempo da narração, na terminologia de Genette), o passado se alarga, por isso precisa que o cone se expanda, tempo da memória (e da narrativa, na terminologia genetteana). No entanto, os tempos se imbricam quando os narradores assumem uma enunciação que confunde: pode ser a criança ainda falando, algo que é evidente em alguns dos contos de Vilela, no qual o desafio técnico é não fingir ser a voz do adulto que relembra o passado, mas fingir ser o menino que, tantas vezes, comenta os fatos, procurando não os afastar demais do presente da narração. Em Munro, os narradores se colocam no presente, mas o estilo cria muitas vezes a sensação de que é a personagem-criança que usa a voz e apenas comenta. Os efeitos provocados pelos narradores não conseguem mudar a natureza dessa ficção: fora do fingimento, são adultos falando de situações da infância, atribuindo a elas a condição da beleza, possibilidade proustiana da permanência do passado como arte. Não há dúvida de que a narrativa autobiográfica é forma de se olhar o tempo decorrido e entender ou criar seu sentido, sobretudo em Munro; em Vilela, mostrar o passado através da beleza já é pleno de sentido. Algo que funciona, em ambos, como um suporte para a elaboração de elementos essenciais à literariedade da narrativa. Essa abordagem de exemplares da narrativa autobiográfica como modelos das possibilidades de se olhar o tempo, conforme propunha Ricoeur, pode ilustrar o que o filósofo considerava uma das razões de se fazer literatura. Mas também alguns dos modos pelos quais a narrativa literária constrói esse olhar. 

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