Pesquisar este blog

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Uma nação, uma língua, uma literatura

Otto Leopoldo Winck*

O processo de aldeialização do globo – isto é, o processo de unificação cultural que começa reunindo clãs e tribos e tem por fim a consolidação de um sistema-mundo, para nos servirmos da terminologia de Immanuel Wallerstein – nem sempre foi contínuo e linear.[i] Antes da emergência das culturas nacionais, houve na Europa ocidental e central um sistema cultural relativamente homogêneo, assentado sobre os pilares da herança judaico-cristã e greco-romana. Neste vasto espaço social os intelectuais e literatos, por cima de suas diferenças étnicas e regionais, compartilhavam um repertório comum de regras e materiais. Por toda a Idade Média, as fronteiras políticas, extremamente flexíveis, porosas e retalhadas, não guardavam relação com as fronteiras muito mais amplas e nítidas desta cristandade de vocação universalista, onde o outro, ou estava do lado de fora (os muçulmanos), ou segregado em guetos (os judeus). Neste grande aldeia europeia não era incomum que alguém, nascido em Castela e morto em Bolonha, como São Domingos, fundador da ordem dos dominicanos, fizesse pregações na Dinamarca, circulasse constantemente por Roma e Paris, e mandasse seus discípulos fundarem conventos em lugares tão díspares como Inglaterra, Escandinávia, Alemanha e Polônia. Mais tarde, na Idade Moderna, essa respublica clericorum é substituída por uma respublica litterarum. O holandês Erasmo de Roterdã, por exemplo, lecionou com a mesma desenvoltura em centros como Paris, Lovaina, Veneza, Basileia e Cambridge, e em suas muitas viagens esteve inclusive em Portugal. O substrato cultural de todos os membros desta república é praticamente o mesmo. Longe de localismos, a literatura é “universal”. As cartas que trocam entre si – primeiramente em latim e depois em francês – atestam este fato. Com a emergência do nacionalismo, todavia, esta unidade se fragmenta e, em vez da Weltliteratur [literatura mundial], como pretendia Goethe, irrompem as literaturas nacionais, de modo que a literatura em alemão, em francês, em português vão se transformar aos poucos nas literaturas da Alemanha, da França, de Portugal, as quais vão contribuir na configuração dessas novas identidades nacionais.
Num artigo sobre a importância das atividades literárias para a formação das nações da Europa, Itamar Even-Zohar se pergunta se a literatura não seria um fenômeno inerente à realidade europeia.[ii] A resposta não é simples. “Não há, talvez, nenhuma sociedade organizada por nós conhecida que não tenha uma espécie de ‘literatura’ (...)”.[iii] Todavia, embora as atividades literárias não sejam uma exclusividade da história europeia, ele pensa que
(...) os papéis que elas desempenharam na organização da vida europeia podem, de facto, ser únicos. Quando estes fenómenos se verificam em países não europeus durante os séculos dezanove e vinte, constata-se que não se trata de uma continuação de actividades literárias previamente existentes nesses países, mas antes de uma actividade nova, resultante do contacto com as nações europeias.[iv] 
Para compreender a origem desta função talvez única que a literatura exerceu na sociedade europeia a partir do século XVIII, é preciso retroceder não só às origens da Europa mas aos albores da própria civilização. A primeira cultura letrada de que se tem notícia floresceu entre os sumérios na Mesopotâmia, onde a relação com os textos, tanto escritos quanto recitados, desempenhou um papel de destaque. Não somente a elite tinha acesso diretamente ao repositório textual, como produtores e intépretes, mas também boa parte da população, em ocasiões festivas, tomava contato com o acervo de textos. O Código de Hammurabi, as inúmeras estelas, as minuciosas descrições dos feitos dos governantes, tudo isto, embora não possa provar a acessibilidade dos textos, demonstra sua centralidade na vida social. Ao mesmo tempo, ao estabelecer a escola como uma instituição de poder, os sumérios também criaram o cânone: um conjunto de narrativas por meio das quais o mundo era interpretado.
Estas narrativas tornaram-se muito poderosas no momento de transmitir sentimentos de solidariedade, de pertença e, fundamentalmente, de submissão a leis e decretos, que deste modo não precisavam de ser impostos apenas através da força física. Assim, a cultura suméria foi a primeira sociedade a introduzir as actividades textuais como uma instituição indispensável, usando-a com o objectivo de criar uma coesão sócio-cultural.[v] 
As características desenvolvidas pelos sumérios são assumidas pelos povos que gradualmente os substituiram, como os acádios, os babilônios, os hititas, os assírios e uma série de tribos e cidades-estados que se espalham entre o Eufrates e o Mediterrâneo, para não falar do Egito, que se desenvolveu de uma maneira relativamente autônoma. Por conta das novas pesquisas, os laços entre essas sociedades e a Europa vão se clarificando cada vez mais. Como os próprios gregos reconhecem, o seu alfabeto tem origem fenícia. Ainda que não se tenha certeza, pode-se afirmar com alguma probabilidade, que a “literatura”, entendida aqui como atividade textual, “encontrou o seu caminho a partir da Mesopotâmia, tendo os hititas (e talvez os lúvios) como intermediários, até à cultura grega, através da qual se propagou, ao longo do tempo, às várias sociedades europeias, num processo em cadeia.”[vi] Enquanto não se pode medir o grau de coesão social produzido pela literatura nessas sociedades do Crescente Fértil, é na Grécia que se observa pela primeira vez evidências dessa função. Pode-se falar, nesse caso, com as devidas reservas, de uma viragem – ainda que ela provavelmente não tivesse ocorrido sem a invenção do alfabeto em Canaã. O repertório literário, até então propriedade de um pequeno círculo de dirigentes e de seus assessores, passa a ser partilhado por camadas mais amplas, ainda que não abarquem mais do que uma parcela da sociedade. E mais:
As actividades textuais têm agora lugar ao ar livre e não se limitam a hinos públicos ou a estelas com inscrições inacessíveis, mas alcançam uma audiência cada vez maior. Permitem inclusivamente uma certa crítica social e um tratamento menos reverente dos governantes (em particular na tragédia e na comédia). Além disso, as histórias dos tempos passados formam gradualmente um cânone amplamente aceite e convertem-se em elementos básicos de ensino e de auto-diferenciação para grupos cada vez mais amplos. (...)
Além disso, através destes textos, a Koiné grega alcançou muito mais êxito do que qualquer outra língua precedente (em comparação, o caso assírio foi antes um fracasso; quando o Império caiu, ninguém continuou a falar assírio: a maior parte da população já tinha passado a falar arameu). Talvez tenha sido na Grécia que se constituiu um modelo através do qual uma língua de índole literária conseguiu substituir gradualmente as variantes locais, para além de transmitir coesão sócio-cultural através dos textos. (...)
Talvez deva ser atribuída à Grécia outra mudança crucial, a saber, a clara proliferação de sistemas culturais e “literários”. Enquanto que os textos na cultura suméria (inclusive os que eram recitados em ocasiões públicas) eram compostos por membros de uma elite e os textos na Babilónia, Assíria ou nos reinos hitita e egípcio eram compostos pelos homens de letras, a Grécia proporciona-nos culturas textuais tanto de elite como de carácter popular. (...) A origem da noção moderna de “literatura” como algo relacionado com textos escritos situa-se claramente na Grécia.[vii] 
Como se sabe, etruscos e romanos, e posteriormente, todos os demais povos europeus, beberam da cultura grega. Enquanto a cultura grega, ou melhor, helenística, foi adotada como parte da cultura romana dominante, esta produziu um repertório próprio, decalcado das regras do protótipo grego. Virgílio não teria escrito a Eneida se não existisse antes uma Ilíada e uma Odisseia.
Ainda que na Idade Média vigesse na Europa uma grande variedade étnica, a herança greco-romana, aliada aos interesses centralizadores da Igreja e dos governantes, não permitiram a eclosão de entidades locais. No entanto, quando foi preciso “inventar” as nações, todo um conjunto de regras e operações já estava potencialmente à disposição.
As “nações” ou identidades francesa, alemã e italiana, do ponto de vista da coesão social, são invenções tardias. Para construí-las, foram mobilizados e utilizados processos já consagrados pelo tempo, naturalmente ampliados e adaptados às circunstâncias locais. Os textos, produzidos numa língua nova ou uniformizada de novo, funcionaram em todos estes casos como um destacado veículo de unificação para pessoas que não se considerariam necessariamente “pertencentes” a uma determinada entidade para além da sua localidade. 
Na França, o ponto crucial foi a Revolução Francesa, como já foi dito, quando a burguesia não somente amealhou o poder político da aristocracia como também se apropriou dos seus bens simbólicos. Ao mesmo tempo, ao ampliar o sistema escolar, delegou à literatura uma saliente missão na constituição de uma identidade nacional. É bom lembrar que até então boa parte dos franceses não falavam francês. “Tiveram de ser persuadidos, gradualmente, a adquirir este conhecimento, o que não teria sido possível sem os muitos textos que foram utilizados como instrumentos deste empreendimento (...).”[viii] Ou seja, a literatura, a “nova” literatura nacional, não só descreve a nação como a escreve – e, ao re-escrever seu passado, a inscreve na modernidade.

Nos casos alemão, italiano, búlgaro, servo-croata, checo e talvez mesmo no grego moderno, a “literatura” foi mesmo indispensável para a criação das respectivas “nações”. Em cada um dos casos, um pequeno grupo de pessoas, (...) conhecidos popularmente como “escritores”, “poetas”, “pensadores”, “críticos”, “filósofos” e similares, produziram um enorme corpus de textos para justificar, sancionar e sustentar a existência (ou o seu desejo) e a pertinência de tais entidades – as nações alemã, búlgara e italiana, etc. 
O caso da Alemanha,  aliás, é sintomático. Even-Zohar evoca o exemplo do pequeno Estado de Luxemburgo, um grão-ducado que estranhamente escapou ao processo de unificação alemã. Sua principal língua é o luxemburguês, um “dialeto” germânico que ascendeu ao status de língua nacional apenas pelo fato de ser a língua oficial de um Estado independente. Tal como ele, antes de 1871, havia inúmeros ducados e principados no atual território do Estado Alemão. Não houve nada de “natural” na anuência desses diminutos Estados em se unirem à Prússia,
tendo em vista a criação da união alemã, nem houve nada de “natural” na sua aceitação de uma língua denominada “Alto alemão” (Hochdeutsch), unilateralmente uniformizado (...). Mas foi a reputação dos textos produzidos nesta língua pela geração de Goethe, Schiller e outros que afinal criou a nova nação alemã.[ix]
Este pacote – “uma nação, uma língua, uma literatura”[x] – já não era, quando da unificação alemã, uma novidade. Mas de toda forma ele teve que ser deliberadamente planejado e implementado. Como no caso dos patois na França, todas as demais variantes linguísticas que não se conformavam ao novo modelo do alemão foram descartadas ou reduzidas ao estatuto de “dialetos”.
Um processo semelhante ocorreu à Itália, cuja unificação foi concluída em 1870. Com efeito, não havia nos habitantes dos vários Estados que retalhavam a península itálica nada que os tornassem “italianos”. Todavia, um conjunto de ativistas, tal como os seus equivalentes alemães, “utilizaram a reputação de textos escritos numa língua que quase ninguém falava, para popularizar o mesmo género de proposta (...).”[xi] A língua a que hoje chamamos italiano estava praticamente morta: dos 22 milhões de habitantes da península, somente cerca de 600 mil o compreendiam em 1860.[xii] Mesmo os maiores escritores em italiano, como Alessandro Manzoni (1785-1873), tinham mais fluência em francês.
Com efeito, este modelo de construção nacional revelou-se extremamente exitoso na Europa – e em seguida foi replicado com igual sucesso nos demais continentes. Na América, como não havia o diferencial da língua em relação às metrópoles, foi exigido ainda mais da literatura a construção de uma identidade diferenciada. No Brasil, basta ver José de Alencar, às voltas com seus índios, sertanejos e gaúchos, em seu empenho de configuração da identidade brasileira. Assim, da ancestral Suméria à Itália unificada, passando por uma infinidade de povos, impérios e nações, o arcabouço de atividades textuais a que chamamos literatura foi de grande relevância para a coesão social de grandes entidades coletivas – e na modernidade, junto com outros elementos, “criou” as nações modernas.

Notas
[1] Sobre o conceito de sistema-mundo (World System) cf. WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
[1] EVEN-ZOHAR, Itamar. O papel da literatura na criação das nações da Europa. In: CUNHA, Carlos Manuel Ferreira da (ed.). Escrever a nação: literatura e nacionalidade (uma antologia). Ponte Guimarães (Portugal): Opera Omnia, 2011, p.77-99. Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/papers/trabajos/IEZ_ 2011--O%20Papel%20da%20Literatura.pdf > Acesso em: 12 fev. 2012.
[1] EVEN-ZOHAR.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 79.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 80.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 81-82.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 84-85.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 90.
[1] EVEN-ZOHAR, p.  90-91.
[1] Jocosamente, Even-Zohar chama este conjunto de três itens de package deal. Ibid., p. 91.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 92.
[1] EVEN-ZOHAR, p. 93. Os dados são retirados de MAURO, Tulio de. Storia linguistica dell’Italia unita. Roma: Laterza, 1963. Somente em 1980 o italiano tornou-se a língua falada pela maioria da população.



REFERÊNCIAS

EVEN-ZOHAR, Itamar. O papel da literatura na criação das nações da Europa. In: CUNHA, Carlos Manuel Ferreira da (ed.). Escrever a nação: literatura e nacionalidade (uma antologia). Ponte Guimarães (Portugal): Opera Omnia, 2011, p.77-99. Disponível em: <http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/papers/trabajos/IEZ_ 2011--O%20Papel%20da%20Literatura.pdf > Acesso em: 12 fev. 2012.

MAURO, Tulio de. Storia linguistica dell’Italia unita. Roma: Laterza, 1963.

WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.


*Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro, capital. Depois de uma passagem por Porto Alegre, radicou-se em Curitiba. Em 2006 foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond.  2012 foi o vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia, com o volume Desacordes. Doutor em literatura pela UFPR, leciona atualmente na PUCPR e no Mestrado 
em Teoria Literária da Uniandrade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário