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quinta-feira, 26 de março de 2015

POLIFONIA: A LIBERDADE DE NÃO MARCAR OS DISCURSOS NA SUPERFÍCIE DO TEXTO



Edson Ribeiro*

1995. O ano em que o brasileiro começou a sentir um gosto novo, o do consumo. E o otimismo em relação a isso estava apenas começando. Logo viriam as importações, a disponibilidade de produtos que, agora bem feitos, o povo até então achava que eram bons.
1995 também começou a trazer uma atenção para novos ritmos musicais. O povo de fora do Rio de Janeiro percebeu que existia o funk, havia uma incipiente estética da favela começando a aparecer. E uma invasão de pagode e axé de qualidade duvidosa.
Muitos discursos. O cinema retomado os adotou. A literatura sempre o fez, de modos diversos.
Saio de 1995 através de duas obras lidas em sequência: O matador, de Patrícia Melo, e A última quimera, de Ana Miranda. São duas escritoras em atividade, que tiveram seus nomes reconhecidos através de obras importantes, vencedoras de prêmios, e que obtiveram reconhecimento naquela década. Patrícia Melo era um rosto conhecido dos programas de entrevista, em que ela aparecia falando de livros, ou de roteiros de filmes. Não dava para levar muito a sério, e na época a impressão era de que fosse mais uma escritora encaixada num programa para vender seu produto. Já Ana Miranda não geraria esse tipo de celeuma. Seus livros ganham prêmios, são adotados por vestibulares, mas ela vive numa praia no Ceará. Eles raramente passam de uma primeira edição, mesmo sendo conhecidos até no exterior.
A primeira representa exatamente a estética da favela, do crime, dos marginalizados. Influenciada por Ruben Fonseca, de quem adaptou livro para o cinema, teve um de seus livros adaptado por ele. Justamente O matador, que no cinema virou O homem do ano. A autora cruel, que nos coloca diante de matadores de aluguel, que escreve numa linguagem crua, que mimetiza o falar das ruas, com suas gírias e palavrões, é vista por alguns como um mau exemplo. Não há livros dela nas seleções do MEC para as escolas públicas. O medo do choque com a realidade.
Já a segunda é uma escritora canonizada nos meios escolares. As pessoas ainda acreditam que os romances que ela escreve a partir de escritores como Gregório de Matos, em Boca do Inferno, Clarice Lispector, em Clarice, ou Augusto dos Anjos, em A última quimera, são biografias lineares, que façam as vezes de livro didático. Certamente não os leram, mas pensam que a escritora é didática, acadêmica. Ingenuidade, visão claustrofóbica da literatura. E Ana Miranda é cuidadosa ao pesquisar sobre seus inspiradores, chega a colocar bibliografias ao final dos livros. Seus romances resultam em narrativas complexas, de quem assimilou recursos de grandes modernistas.
Em O matador, Melo nos coloca diante dos rapazes bêbados, que mastigam de boca aberta, das periguetes que trocam uma noite (a autora jamais diria de “amor”, pois na sua obra os personagens “fodem”) por um pouco de cocaína, dos policiais que ajudam o assassino bem quisto para que todos no bairro se livrem do trombadinha incômodo. Em A última quimera, Miranda nos faz pensar em um passado em que senhoras passam suas tardes mexendo geleias diante do tacho, ou bordando enxovais para o bebê, tudo em cores que sirvam para os dois sexos. Existem sobrados com porões para se guardarem poemas. Os poetas duelam para salvar sua honra. E pessoas morrem de doenças como tuberculose ou asma. Sua linguagem mimetiza a de um poeta de 1914, alguém que lamenta a morte do amigo que não conseguiu o reconhecimento.
No entanto, saio das duas obras com a sensação de que as duas escritoras compartilham ideais estéticos muito semelhantes. Será apenas coincidência, ou mais um daqueles sintomas de saturação de que os teóricos da pós-modernidade costumam falar? Elas escrevem na mesma época, talvez nem saibam da existência da outra, mas as obras se parecem na estrutura. São partes, nas quais se inserem capítulos curtos. Miranda dá nome a essas partes e capítulos. Curtos, quase machadianos. Quase como se as partes fossem os atos e os capítulos, as cenas de uma peça. Melo prefere o silêncio dos números, mas os capítulos são curtos, diretos, o livro é magro. A concentração de ações é grande; um roteirista não conseguiria colocar tudo em duas horas de filme.
As duas preferem a brevidade em estruturas que lembram os romances do século XIX. E esta é conseguida, sobretudo, pelo modo como assumem aquilo que tantas teorias do século XX chamaram de “polifonia”. São escritoras polifônicas. As personagens falam, brigam, conversam, de maneira que essas falas ocupem os corpos dos romances. No século XX, tantos teóricos deram nomes diversos a esses modos de inserir os discursos no texto. Bakhtin estudou a polifonia em Dickens, em Dostoiévski. Maingueneau criou toda uma grade de modos de citar o discurso do outro dentro da fala de um narrador. Authier-Revuz criou a teoria das heterogeneidades, que podem ser mostradas pelo autor ou não. Parece sempre que todos esses teóricos leram a grande literatura chamada de moderna. Leram e montaram modelos estruturalistas. O discurso relatado, de Maingueneau, exige marcas, como aspas e travessões. Ou verbos dicendi. Authier-Revuz também parece olhar demais para travessões, aspas, marcas na superfície dos textos que diferenciem as vozes do narrador e a de cada personagem.
Mas não se encontra nada disso em Melo ou em Miranda. As vozes estão todas lá. Já não é preciso marcar na superfície as variações de vozes. Nada de travessões, aspas, mudanças de parágrafos, itálicos. É possível ter as falas de mais de um personagem em um único período, e o leitor vai perceber quem está falando pelo seu repertório de discursos, de possibilidades narrativas, sua memória do cinema e da televisão, e não mais de marcas que tornem essas vozes “relatadas” ou “marcadas”, como diriam teóricos.
Esses modos de construir narrativas com vozes que se alternam garante agilidade aos textos. Eles podem ser curtos, fragmentários, que o leitor vai sentir um efeito de inserção no real peculiar às narrativas visuais, sobretudo o cinema. São coincidências. Ou tendências da nossa narrativa contemporânea. O leitor frequente as reconhece. O eventual acha confuso.
1995 pode servir de pretexto para se falar sobre essa literatura de final de século, mesmo tendo sido um ano de otimismo no país. Narrativas polifônicas, como queriam tantos teóricos. Elas já não podem ser encaixadas em teorias que buscam classificar as possibilidades de uso de discursos. Deram liberdade ao uso das vozes. É como se aquilo que um dia foi chamado de “fluxo da consciência” e visto como uma revolução no modo de inserir o discurso interior, subjetivo, agora tivesse se tornado um fluxo de vozes ininterruptas, sem a preocupação com elementos que possam interrompê-lo.

* Edson Ribeiro é Professor do Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE), em Curitiba.

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