Sigrid Renaux*
Após haver guardado um artigo de jornal por muitos
anos, ele ressurge – numa dessas arrumações que nós, professores/leitores,
fazemos a contragosto – motivando-me a comentá-lo, pois seu título e subtítulo
imediatamente me remeteram ao nosso Mestrado em Teoria Literária: “A utilidade da poesia: Josef Brodski mostra
como transformar teoria em ação poética em ‘Quase uma Elegia’” (Folha de S.Paulo, 04/02/1996), de
autoria de Aurora F. Bernardini (USP). A publicação deste artigo na data
indicada se deve ao fato de Brodski, Prêmio Nobel de Literatura de 1987, ter
falecido uma semana antes em Nova York.
Nascido em Leningrado
em 1940 (atualmente São Petersburgo), foi acusado de ser “um parasita social”
em 1964 e condenado pelo governo da União Soviética a cinco anos
de exílio e a trabalhos forçados na Sibéria. Expulso da União Soviética em
1972, exilou-se nos Estados Unidos, onde viveu o resto de sua vida.Tornou-se cidadão norte-americano e um dos poetas mais
importantes dos Estados Unidos como também da Rússia, escrevendo poemas em
inglês e em russo. Em 1977, após haver publicado “Belle Époque”, ganhou o
título de doutor em literatura pela Universidade de Yale. Foi também professor
nas universidades de Nova York e de Michigan.
Como comenta Bernardini, a pergunta “sintomaticamente
acintosa” formulada pelo juiz no processo de Leningrado em 1964 “Qual é a
utilidade de seus ‘assim chamados’ versos?” foi respondida, na ocasião, com
êxito escasso. Entretanto, as respostas do poeta – reelaboradas vinte anos mais
tarde – tornaram-se os pressupostos teóricos de sua obra, vindo a constituir
uma síntese de reflexões sobre a arte, na coletânea de ensaios “Menos que um” (São Paulo: Companhia
das Letras, 1994) e no discurso de
aceitação do Prêmio Nobel.
Bernardini discorre a seguir sobre alguns pontos do
pensamento de Brodski que aproximam a arte da poesia com a filosofia:
Uma vez que o significado privilegiado da existência
humana é, no entender do poeta, a aquisição de um rosto não comum, (a
especifização (sic) da vida de cada
um) e sendo a diversidade humana justamente a razão de ser da literatura,
que estimula o sentido da unicidade do homem e o transforma de animal social em
eu autônomo, decorre que a estética é a mãe da ética, ou seja, em
sentido antropológico: antes de ser uma criatura ética, o ser humano é uma
criatura estética. E ainda, mais especificamente, se aquilo que nos
diferencia dos outros animais é a palavra e sendo o poeta o
instrumento de que se serve a língua para existir e renovar-se, a poesia
– enquanto realização suprema da palavra – é a meta de nossa espécie. Se o
lirismo é quem faz sobreviver uma obra de arte, o lirismo é a ética da
linguagem. (Grifos meus)
A afirmação “antes de ser uma criatura ética, o ser humano é uma
criatura estética” dá uma nova dimensão não só à arte
da palavra, ou seja, à poesia, mas à arte como um todo, como “produção
consciente de obras, formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal
de beleza e harmonia ou para a expressão da subjetividade humana” (Houaiss). Ou
seja, para Brodski, a reflexão do homem a respeito da beleza sensível e do
fenômeno artístico é anterior à sua posição ética. E, mais ainda, ao afirmar
que “Se o lirismo é quem faz sobreviver uma obra de arte, o lirismo é a
ética da linguagem”, Brodski coloca a subjetividade e
as formas que deixam transparecer o estado de alma do autor como sendo a
essência das normas e valores presentes numa realidade social –
expressos no texto poético.
Como prossegue Bernardini,
Quanto mais rica for a experiência estética,
tanto mais segura será a escolha moral e tanto mais livre o
homem. Daí o famoso dito de Dostoiévski de que a beleza salvará o mundo. A arte
anima a realidade e corre paralela à história. Os poetas dizem a história por
meio de sua linguagem progressiva. A literatura é o antídoto que temos
contra a lei da jângal: uma existência que ignora os critérios propostos pela
literatura é uma vida inferior. (grifos meus)
Ao vincular a experiência estética à escolha moral do
homem, e, mais ainda, ao afirmar que se ignorarmos os critérios propostos pela
literatura estaremos nos igualando à lei da floresta selvagem, Brodski reforça
a precedência da estética sobre a ética, da arte sobre as normas e valores
humanos, pois é “a beleza que salvará o mundo”(da obra O Idiota).
No
último trecho em que parafraseia Brodski,
Bernardini escreve:
Recorremos à poesia por razões inconscientemente
miméticas. Por utilizar o modo analítico de cognição, mas orientar-se
principalmente para os modos da intuição e da revelação, o
exercício poético é um acelerador de consciência. Enfim, literalmente: “A sociedade,
maioria por definição, presume ter outras opções que não sejam as de ler
versos, por mais bem escritos. Ao deixar de ler versos, entretanto,
arrisca-se a cair naquele nível de elóquio em que uma sociedade é presa
fácil de demagogos e tiranos”. (grifos
meus)
Se
a poesia, portanto, é recriação da realidade, por meio da intuição e da
descoberta, e a atividade poética energiza nossos sentimentos e conhecimento,
ao deixarmos de ler versos nos tornamos presas fáceis do discurso de demagogos
e tiranos.
Apesar de não termos tido acesso direto à “Quase uma
elegia” (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, trad. de Boris Schnaiderman e
Nelson Ascher), esgotada, acreditamos que esta introdução de Bernardini à obra
de Josef Brodski, seja de uma perspectiva literária ou filosófica, nos instiga
à leitura de sua obra poética que, segundo Bernardini, “não somente sustenta a
teorização do autor, mas, para usar um termo que ele haveria de repudiar de
imediato, a torna dialética”.
* Sigrid Renaux é Professora do Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade, em Curitiba.
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