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quinta-feira, 14 de maio de 2015

SALÃO DE BELEZA, DE MARIO BELLATIN



Paulo Sandrini *

No início de 2007, a revista colombiana Semana publicou uma lista com os 100 melhores romances em língua espanhola daqueles últimos 25 anos. Oitenta e um escolhidos - entre críticos, jornalistas e escritores - se responsabilizaram pela seleção que, em casos assim, sempre corre o risco de ser questionada. No entanto, esse tipo de pesquisa também pode e deve ser entendido como busca por novas vozes literárias e estímulo à renovação do gosto tanto do leitor comum quanto do leitor especializado.

E apesar de, no topo da lista, figurarem Gabriel García Márquez com O amor nos tempos do cólera e Mario Vargas Llosa  com A festa do bode, uma das boas surpresas nos chegou com Roberto Bolaño. Fato que aponta ser o escritor chileno, morto aos 53 anos em 2003, a mais recente canonização das letras latino-americanas. Foram três livros de Bolaño na lista: Los detectives salvajes e 2666, segundo e terceiro lugares, e Estrella distante, décimo quarto.

E pouco tempo após a pesquisa colombiana, numa atitude corajosa, ainda em 2007, a pequena casa editorial Leitura XXI verteu para o português um dos figurantes entre os primeiros 25 títulos considerados mais importantes, Salão de beleza, do até então pouco conhecido entre nós, Mario Bellatin. Salón de belleza (título original), que teve sua primeira edição mexicana em 1991, podemos dizer que foi uma bem acertada escolha da editora gaúcha para apresentar Bellatin ao Brasil, apesar das falhas de revisão presentes na publicação, que chegam a comprometer um pouco a qualidade do texto em relação ao espanhol e deixam rastros de certa pressa e descuido ao se publicar um nome relevante como o de Bellatin (autor que se tornou, sem sombra de dúvida, uma das mais importantes vozes da literatura feita nas Américas e lido no Brasil, atualmente, por um bom número de interessados numa escrita particularizada e experimental).

Mario Bellatin, apesar de nascido na Cidade do México, começou sua carreira literária no Peru, país em que publicou seus primeiros livros. Em Lima, graduou-se em Teologia e Ciências da Comunicação. Mais tarde, estudou cinema em Cuba. Ao regressar ao México, foi diretor da área de Literatura e Humanidades da Universidade do Claustro de Sor Juana e se tornou membro do Sistema Nacional de Criadores de México. Dirigiu também na capital mexicana a Escuela Dinámica de Escritores, conhecida por seu método alternativo aos espaços acadêmicos e às oficinas literárias tradicionais, e que em 2009 se renovou, tornando-se não apenas um local para a escritura, mas também para a produção de programas televisivos e de uma coleção editorial. Mario Bellatin chegou, também, a atuar em Blackout, peça teatral de sua autoria.


A partir dessa rápida apresentação, não deve ser difícil, mesmo para quem ainda não conhece a obra do mexicano, imaginar minimamente como ela se constrói. Exatamente: no campo experimental, que traz como uma de suas principais características a interseção e o diálogo entre diferentes formas de expressão artística. Vários livros de Bellatin buscam contato com as artes plásticas, a fotografia, a instalação. Segundo o crítico peruano Javier Ágreda, o procedimento narrativo que encontramos, por exemplo, em El jardin de la señora Murakami, se aproxima dos princípios básicos da arte tradicional japonesa: simplicidade, sobriedade e poder evocativo. Em Perros héroes (também traduzido no Brasil, pouco tempo atrás) não é difícil identificar a busca pela imobilidade, pelo congelamento do tempo e das ações que caracterizam o registro fotográfico. Esse breve romance é narrado como se fosse uma série de pequenos quadros que parecem estáticos, e tal procedimento cai feito uma luva para retratar a vida do personagem chamado "homem imóvel". E para evidenciar ainda mais o diálogo com outras expressões artísticas, a edição de Perros héroes traz um livreto com registros fotográficos de uma série homônima de instalações.

Tratando mais diretamente de Salão de beleza, objeto principal de nosso texto, podemos inferir que essa novela (e o romance breve é o campo narrativo em que se firma a produção de Bellatin) tem sua força no despojamento dos excessos narrativos - traço esse preservado (ao cotejarmos as edições em espanhol e português) pela tradução de Maria Alzira Brum Lemos. O tom protocolar, distante, é usado o tempo todo pelo personagem-narrador para tecer seu relato baseado em três histórias – que ora se misturam, ora se desvencilham, vão ao passado e dele retornam – e que tratam, além da vida do próprio narrador (cabeleireiro e travesti, em fase terminal de uma doença de que não sabemos o nome), dos aquários cultivados por ele e da transformação de seu salão de beleza em "Morredeiro".

E tal distanciamento imposto pelo processo narrativo utilizado por Bellatin se faz orgânico para a escritura de um livro que busca se converter em metáfora de uma sociedade – marcada pela indiferença e pela degradação das relações humanas – que, por mais que se modernize a cada dia, chega, muitas e muitas vezes, a engendrar tão-somente situações de desumanidade, isolamento e miséria típicos dos períodos mais sombrios da humanidade. Mesmo que nos deixe reconhecer em Salão de beleza toda a urbanidade que caracteriza o nosso presente, sobretudo o da América latina, Bellatin joga com a indefinição temporal quando incorpora ao enredo a peste que acomete os humanos para, assim, nos remeter, de modo impiedoso, a um mundo obscuro e medieval. Passado (atrasado) e presente (desenvolvido/atrasado) da humanidade se mesclam de modo sutil por sob uma camada alegórica representada pelo mal contagioso (típico dos tempos mais remotos) que não se pode debelar. E a atmosfera de Salão de beleza  vem carregada de alegorias. A condição dos peixes morrendo e dos aquários em degradação, por exemplo, servem como metáforas da vida em extinção e representam a evolução do mal nos enfermos que se encontram no “Morredeiro”.

Contudo, para o protagonista, entre os entes desenganados e os peixes não existe diferença; pois, apesar de se interessar por eles, geralmente limita-se apenas a ver como todos vão ficando carentes de sua beleza anterior. Os fatos, quando nos são revelados com isenção de retórica e emotividade, nos fazem esbarrar num procedimento muito parecido ao de Kafka: a realidade grotesca do "Morredeiro", apesar de toda a naturalidade com que o narrador conduz o relato, confere à ficção um clima de lento e inesgotável pesadelo.
Nessa novela de Bellatin não há espécie alguma de questionamento moral. O "Morredeiro" em que se transformou o local antes destinado a tratar da beleza é simplesmente um espaço para ajudar os enfermos a não viverem sozinhos a agonia da morte. Espaço antes dotado do frescor dos aquários bem cuidados, de portas abertas ao público, e mais tarde lugar encerrado e escuro, repleto dos miasmas da degradação humana. O salão de beleza como lugar destinado ao fim e, sobretudo, os aquários são a própria imagem do encerramento sem possibilidade de saída. E não é essa sensação de impotência, de falta de uma porta de escape, que nos oferece a morte? Não é a doença um aprisionamento do corpo? Em Salão de beleza  até a sexualidade representa (pois artificializada por meio do transformismo ou encoberta pelo vapor das saunas) uma prisão para o corpo do personagem-narrador e não uma libertação como pode parecer à primeira vista. Por isso, o sexo também será tratado de modo frio e distante. É o corpo contido, que barra a aproximação afetiva nas relações, que afasta e condiciona à inconstância, à busca desenfreada por outros corpos e outros objetos de desejo.

E como mesmo diz o protagonista, em certa altura do texto, depois de revelar ter sentido alguma afeição por um dos enfermos: "... meus gostos mudam de frequência. De um momento para o outro, ele deixou de me interessar por completo". Assim como o interesse por certos tipos de peixes se modifica e os animais vão sendo trocados por outros nos aquários – mas no fim das contas sendo todos eles a mesma coisa –, os doentes também recebem a mesma indiferença que os animais por parte do personagem central. Tudo é encarado não apenas com naturalidade, como já dissemos, mas, até certo ponto, com monstruosidade. Inclusive e, sobretudo, a morte, que faz suas vítimas sem gerar grandes crises ou revoltas. Mas também, às vezes, um tom levemente melancólico se apossa do gerente do "Morredeiro", justamente quando fala daquele seu passado de esplendor como travesti, ou quando ainda frequentava a sauna ou mesmo quando tratava dos aquários dotados de frescor e vida. Nessa hora, o protagonista nos deixa entrever uma dose de humanidade e sai por alguns momentos da condição de monstro de que trata o posfácio da obra escrito pelo argentino Ariel Schettini. Mas no geral, mesmo se achando o próprio protagonista acometido pela enfermidade, o relato segue sem abalos. E se nos detivermos bem nessa frialdade, nessa indiferença diante da morte, não seria inoportuno dizer que esse texto de Bellatin é uma das mais implacáveis representações da morte moderna, da qual nos falou Octavio Paz em O labirinto da solidão. Nela não há nenhum tipo de transcendência ou referência a outros valores. Em quase todos os casos é, tão-somente, o final inevitável de um processo natural. Num mundo de fatos, a morte é apenas um fato a mais, conclui o poeta e ensaísta mexicano. E é assim que o narrador de Salão de beleza opera diante do inevitável. Tudo que se espera com o "Morredeiro" é encurtar o sofrimento da morte e oferecer companhia nessa hora. Nada mais. Por isso, qualquer tipo de ajuda externa, sejam medicamentos ou mesmo a assistência das Irmãs de Caridade, será rejeitado pelo protagonista que vê nas religiosas somente a figura do oportunista cristão que quer demonstrar "por todos os meios o quanto é sacrificada a vida dedicada aos outros" e prolongar o sofrimento alheio "sob a aparência da bondade cristã".

Salão de beleza, apesar de tudo o que dissemos, possibilita ao leitor entrar no universo do ficcionista mexicano pelas portas de uma obra mais convencional que as recentes. (Mais convencional quando as comparações se limitam ao próprio conjunto da obra de Bellatin – que isso fique bem claro). Diríamos que  para quem pretende ler o que produziu o autor após Salão de beleza (ou seja, livros sem tramas, sem atmosferas sólidas ou conteúdo humanista, como bem apontou Rafael Lemus, uma das vozes de maior destaque na crítica literária mexicana), essa ficção traduzida por Maria Alzira Brum Lemos funciona como espécie de rito de passagem para o restante da produção de um escritor que tem por missão seguir cada vez mais desafiando a escritura e despojando-a de todo excesso para que assim consiga alcançar seu ideal artístico.


 BIBLIOGRAFIA

BELLATIN, Mario. Perros héroes.  México, DF: Alfaguara, 2003.

______________. Salón de belleza.  México, DF: Tusquets Editores, 1999.

______________. Salão de beleza.  Trad. Maria Alzira Brum Lemos. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007.

PAZ, Octavio. O labirinto da solidão e Post Scriptum. 4 ed. Trad. São Paulo: Paz e Terra, 2006.


SITES
ÁGREDA, Javier. 5 novelas de Mario Bellatin, in: http://www.losnoveles.net/bellatin.htm.  Acesso: fevereiro de 2008.

LEMUS, Rafael. La jornada de la mona y el paciente, de Mario Bellatin, in: http://www.letraslibres.com/index.php?art=12012. Acesso: fevereiro de 2008.

Semana.com. Las mejores 100 novelas de la lengua española de los últimos 25 años, in: http://www.semana.com/wf_InfoArticulo.aspx?idArt=101793, acesso em janeiro de 2008.

* Paulo Sandrini é Mestre e Doutor em Estudos Literários pela UFPR, leciona na Escola de Comunicação do UniBrasil e no Mestrado em Teoria Literária no Centro Universitário Campos de Andrade - Uniandrade.


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