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quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Ressignificações míticas: Édipo Rei, Medeia e Hamlet



Anna Stegh Camati ⃰

A visão de mito como um agregado ao qual novas e diferentes variáveis são acopladas, sintetizada por Heiner Müller, tem parentesco com as perspectivas teóricas de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) que, na década de 1950, definiu o mito como a soma de todas as suas variantes. No ensaio “The Structural Study of Myth” (O estudo estrutural do mito), publicado inicialmente no Journal of American Folklore, o antropólogo discute a natureza não canônica da mitologia grega, argumentando que não há uma única versão autorizada de nenhum dos mitos conhecidos, mas uma rede intertextual de numerosas variações que se originaram em diferentes tempos e lugares. Ao enfocar o mito de Édipo, o autor postula que todas as variantes disponíveis, desde a Grécia antiga até o tempo presente, devem ser levadas em consideração, visto que “não há nenhuma versão individual ‘verdadeira’ da qual as outras seriam cópias ou distorções. Toda e qualquer versão pertence ao mito em questão” (1963, p. 218, minha tradução). Lévi-Strauss também argumenta que os mitos são constantemente apropriados e recriados por conta de suas narrativas arquetípicas que revelam características essenciais da condição humana (1963, p. 209).  

A natureza regenerativa do mito, um aspecto que remonta à raiz e origem do gênero dramático ocidental, pode ser relacionada ao conceito de arquitexto, definido por Gérard Genette (1992) como um modelo sujeito a modificações. É importante salientar que a prática de recriar modelos surgiu no período helenístico quando os poetas trágicos baseavam seus textos em diferentes versões de numerosos mitos ancestrais, mas tinham a liberdade de introduzir alterações para despertar o interesse dos espectadores que frequentavam os grandes teatros, construídos ao ar livre nas encostas das montanhas. Donaldo Schüler (2004, p. 7), na introdução de sua recente tradução de Édipo Rei, ressalta que os gregos não saíam de casa “para rever o que já sabiam”, mas para assistir a espetáculos com sabor de novidade. Afirma, ainda, que Sófocles “muda o nome da mãe de Édipo, introduz a enigmática esfinge, a peste, o processo em que o juiz é réu, a autopunição voluntária, o exílio...Inventando e valendo-se de invenções alheias, Sófocles produziu uma peça de indiscutível originalidade” (SCHÜLER, 2004, p. 7).

Eurípides, por sua vez, construiu uma narrativa dramática coerente a partir de uma série de conexões imprecisas que encontrou em variantes do mito de Medeia. O autor não privilegiou a viagem de Jasão e os Argonautas, mas preferiu relatar as consequências dos eventos heróicos em sua tragédia. Como em Shakespeare, as paixões humanas são o centro de interesse e os polos da oposição trágica se encontram no interior do homem. Em Medeia (431 b. C.), Eurípides explora regiões trágicas não desbravadas por Ésquilo e Sófocles, introduzindo muitas inovações em seu texto, dentre elas o infanticídio de Medeia como um ato inteiramente premeditado. No mundo grego, em nenhuma outra versão do mito de Medeia, a protagonista mata os filhos com suas próprias mãos, nem se torna porta-voz de um discurso revolucionário em defesa das mulheres.

O afastamento de Sófocles e Eurípides das versões tradicionais da mitologia constitui apenas uma das muitas evidências de que a prática de ressignificação dos mitos foi iniciada pelos tragediógrafos gregos que imprimiram sua marca em seus escritos. Procedimentos similares foram usados pela dramaturgia neo-clássica e, mesmo Sigmund Freud, vestiu com novas roupagens os mitos que encontrou na literatura dramática, principalmente em Sófocles, Shakespeare and Ibsen. 

Além de apropriar-se da saga dinamarquesa de Amleth, Príncipe da Jutlândia, recontada por Saxo Grammaticus no final do século XII e publicada em 1512, Shakespeare também inscreve, no enredo trágico de Hamlet (1601-1602), temas e motivos que remetem aos mitos e antigos ritos sacrificiais oferecidos aos deuses da vegetação, os quais, de acordo com Charles Marowitz, são elementos que habitam as camadas mais profundas da mente humana:

[...] há uma espécie de marca cultural de Hamlet no inconsciente coletivo das pessoas, de modo que crescemos tendo familiaridade com Hamlet, mesmo que nunca tenhamos lido a peça, visto um filme ou assistido a uma encenação. O ‘mito’ incorporado no texto é mais antigo que a peça, e a sobrevivência da peça na imaginação da modernidade tem base no mito. (MAROWITZ, 1991, p. 19)

Shakespeare traça um paralelo (com diferenças) ao implantar, em Hamlet (1601-1602), o modelo mítico que permeia Édipo Rei, de Sófocles. Assim como acontece em Tebas, os ritmos naturais da vida são destruídos em Elsinore, porque tabus culturais foram violados. Ambos os personagens-título, Édipo e Hamlet, podem ser identificados com o bode expiatório sacrificial, e ambos são incumbidos da tarefa de consertar o que está errado em um mundo que se encontra fora dos eixos. No entanto, enquanto Édipo é responsável pela disseminação da peste (mesmo que inadvertidamente), Hamlet não tem culpa em relação aos males que acometem sua comunidade, visto que o fratricídio foi perpetrado pelo seu tio Claudio. As referências à poluição e pestilência anunciadas na abertura da peça grega – a esterilidade da terra, a morte dos rebanhos e a infertilidade das mulheres – encontram ecos no texto de Shakespeare, no qual imagens de podridão e doença são recorrentes para simbolizar uma organização social doentia. Ao longo da peça, Hamlet reflete sobre a corrupção à luz de valores e crenças vigentes em sua época. Em seu primeiro solilóquio, o príncipe compara a Dinamarca a um jardim repleto de ervas daninhas que crescem e se multiplicam rapidamente, um lugar onde se observa a proliferação da desordem e da decadência (SHAKESPEARE, 2004, p. 44).

No artigo “A representação dos clássicos: reescritura ou museu”, a pesquisadora francesa Anne Ubersfeld (2002, p. 9-10) discute as mudanças de ótica que ocorreram nas artes cênicas em relação à montagem dos clássicos, visto que hoje a reconstituição arqueológica cedeu lugar à adaptação criativa. Ela argumenta que não há um corte temporal decisivo para a canonização de um texto, visto que  tudo o que se escreve hoje tende a deslizar para o clássico.  Acrescenta, ainda, que mesmo um texto canônico, cuja problemática permanece próxima da atualidade apesar do afastamento temporal, também exige uma adaptação para tornar-se legível ao espectador de hoje.

Referências
EURÍPIDES. Medéia. Trad. Millôr Fernandes. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2004.
GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Extratos traduzidos do francês por Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. Cadernos do Departamento de Letras Vernáculas. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Letras, 2005.
LÉVI-STRAUSS, Claude. The Structural Study of Myth. In: _____. Structural Anthropology. v. 1. Trans. Clair Jacobson and Brooke Grundfest Schoepf. New York: Basic, 1963. p. 206-231.
MAROWITZ, Charles. Recycling Shakespeare. London: Macmillan, 1991.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad. Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro: Lacerda, 2004.
SÓFOCLES. Édipo Rei. Trad. Donaldo Schüler.  Rio de Janeiro: Lamparina, 2004
UBERSFELD, Anne. A representação dos clássicos: reescritura ou museu? Trad. Fátima Saadi. Folhetim, nº 13, p. 08-37, abr./jun. 2002.


⃰ Anna Stegh Camati é Professora Titular das disciplinas “Teorias do Teatro” e “Poéticas da Reciclagem” do Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE), em Curitiba.

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