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quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Diários não tão íntimos: o romance fingindo ser o que é

*Edson Ribeiro da Silva
Em A lógica da criação literária, Käte Hamburger considera o romance em primeira pessoa como um gênero específico, que define como “formas especiais”.
Não se trata do épico, pois o romance em primeira pessoa possui um personagem-narrador, que fala de si, rompendo com o distanciamento que a narrativa épica tem em relação ao momento da narração. O narrador épico vê o narrado de fora, o que lhe garante distanciamento, impessoalidade, mas domínio sobre ele. A narração em terceira pessoa, com seu domínio sobre o outro, seria exemplo de épico.
Não se trata do lírico, pois neste o autor fala de um eu que se confunde com ele mesmo. Ou seja, o lírico não enganaria o leitor quanto à natureza do eu que fala de si. Trata-se de uma enunciação que não é fingida, como a da ficção em terceira pessoa o é, pelo modo como fala de outro.
O romance em primeira pessoa finge que o eu que enuncia, que narra, é o autor do texto. Na verdade, não é. Fingindo ser, não se enquadra na categoria do lírico. Ao mesmo tempo, adquire a atitude do fingimento que, ao contrário do que ocorre na terceira pessoa, que se desnuda como ficção, pode até enganar o leitor.
Dessa forma, algumas modalidades do romance, como aqueles em forma de cartas, de diário, de autobiografia, são formas especiais. Têm uma configuração que imita a de gêneros não-literários. Por isso, conseguem efeitos de veridicção que o romance em terceira pessoa não almeja. O romance em primeira pessoa tenta convencer o leitor acerca da sua semelhança com a realidade através dessa configuração. Ser carta, diário, autobiografia aproxima a experiência da linguagem romanesca daquela efetiva que tais gêneros realizam.
Bakhtin, em A teoria do romance, chama a tenção para essa possibilidade de o romance assumir o formato de outros gêneros. Chama de plurilinguismo a possibilidade de, incorporando gêneros não-literários, orais e escritos, ou até literários, como a novela de cavalaria, assumir as suas configurações em vários sentidos, seja na estrutura, no discurso ou na enunciação. A incorporação da linguagem cotidiana, não-literária, aproxima o romance do presente. Obtém-se a ilusão de proximidade entre aquilo que é narrado e o momento da narração.
Se uma modalidade como o romance em forma de autobiografia pode aumentar a distância entre narrativa e narração, o romance em forma de diário a diminui. No primeiro caso, têm-se a visão de conjunto típica da epopeia, no que se refere ao narrado: o narrador está de posse de um passado que não pode ser alterado e, quase sempre, narra para falar dele e não do momento da narração. Já o romance em forma de diário adota a incompletude desse gênero: relatam-se fatos ocorridos quase ao mesmo tempo em que são narrados; não há um distanciamento no tempo que permita o controle sobre o passado; há uma preocupação com o imediato, passado e futuro. Por isso, trata-se de uma modalidade romanesca que assimila, como diria Bakhtin, a incompletude da rotina, do cotidiano, como forma de distanciamento do épico, mas de aproximação do universo do leitor. A configuração permite efeitos de real que podem produzir o fingimento que engana, que Hamburger considera típica da primeira pessoa.
A possibilidade de o romance, incorporando linguagens, não possuir uma que seja sua, própria do gênero, também o libera para assimilar formas que surpreendem pela experimentação, pelo ineditismo. A autoficção é um exemplo notável das assimilações de formas não-literárias, mas também de sua distensão, de sua renovação através de estratégias experimentais de configuração. Mas elas também são originais na ficção pura. Uma dessas possibilidades é a assimilação de formatos como a redação infantil, o relato oral, a confissão religiosa, o desabafo emocionado. A atitude de fingir que se fala para um tu que não se manifesta é uma formatação recorrente nas letras de músicas. A narrativa em primeira pessoa a assimilou de modo produtivo, a partir do momento em que o romance passou a fingir que não era mais escrita, mas fala. Memórias de Lázaro, de Adonias Filho, exemplifica a técnica, assim como Lavoura arcaica, de Raduan Nassar. A fala como narração aproxima o romance, outra vez, do lírico das letras de música: o tu pode estar ausente, morto, mas é para ele que se fala; pode estar presente sem que sua fala seja representada. Ao contrário do que Hamburger dissera, essas formas são mais recorrentes que especiais. É a cara própria do romance, conforme Bakhtin o definira.
Basta que se pense em Diário de um ladrão, de Jean Genet. Não se trata de um diário, mas de uma autobiografia. Não apenas na configuração, mas no caráter verídico. No entanto, a configuração inusitada de uma obra que é autobiografia, intitula-se como diário, mas assume as especificidades estruturais e narrativas do romance leva o leitor a um poderoso efeito de estranhamento. A obra está no limite entre a ficção e a autoficção, no sentido contrário ao modo como Bakhtin dizia que o romance, ficcional, se aproximava do não-ficcional. Diário de um ladrão é autobiografia que procurou o efeito de incompletude típico do diário: não se ter uma visão completa a respeito do passado e de quem se é. Assim, o autor pode fingir para aquele leitor que de fato sabe quem ele é, que leu sua biografia, que ele, como homem, ainda está em formação, é um projeto a ser construído junto com a configuração da obra.
Tanto Hamburger quanto Bakhtin já haviam percebido o quanto a narrativa em primeira pessoa se aproximava da realidade, como efeito. Ela via nessa possibilidade um fingimento capaz até de enganar o leitor; para ele, esse fingimento menos enganava que desnudava o real. Trata-se de uma estratégia que rende possibilidades sempre renovadas em termos de elaboração estética.


*Professor  no Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE

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