*Edson Ribeiro da Silva
Em A lógica da criação literária, Käte
Hamburger considera o romance em primeira pessoa como um gênero específico, que
define como “formas especiais”.
Não se trata
do épico, pois o romance em primeira pessoa possui um personagem-narrador, que
fala de si, rompendo com o distanciamento que a narrativa épica tem em relação
ao momento da narração. O narrador épico vê o narrado de fora, o que lhe
garante distanciamento, impessoalidade, mas domínio sobre ele. A narração em
terceira pessoa, com seu domínio sobre o outro, seria exemplo de épico.
Não se trata
do lírico, pois neste o autor fala de um eu que se confunde com ele mesmo. Ou
seja, o lírico não enganaria o leitor quanto à natureza do eu que fala de si.
Trata-se de uma enunciação que não é fingida, como a da ficção em terceira
pessoa o é, pelo modo como fala de outro.
O romance em
primeira pessoa finge que o eu que enuncia, que narra, é o autor do texto. Na
verdade, não é. Fingindo ser, não se enquadra na categoria do lírico. Ao mesmo
tempo, adquire a atitude do fingimento que, ao contrário do que ocorre na
terceira pessoa, que se desnuda como ficção, pode até enganar o leitor.
Dessa forma,
algumas modalidades do romance, como aqueles em forma de cartas, de diário, de
autobiografia, são formas especiais. Têm uma configuração que imita a de
gêneros não-literários. Por isso, conseguem efeitos de veridicção que o romance
em terceira pessoa não almeja. O romance em primeira pessoa tenta convencer o
leitor acerca da sua semelhança com a realidade através dessa configuração. Ser
carta, diário, autobiografia aproxima a experiência da linguagem romanesca
daquela efetiva que tais gêneros realizam.
Bakhtin, em A teoria do romance, chama a tenção para
essa possibilidade de o romance assumir o formato de outros gêneros. Chama de
plurilinguismo a possibilidade de, incorporando gêneros não-literários, orais e
escritos, ou até literários, como a novela de cavalaria, assumir as suas
configurações em vários sentidos, seja na estrutura, no discurso ou na
enunciação. A incorporação da linguagem cotidiana, não-literária, aproxima o romance
do presente. Obtém-se a ilusão de proximidade entre aquilo que é narrado e o
momento da narração.
Se uma modalidade como o romance em forma de
autobiografia pode aumentar a distância entre narrativa e narração, o romance
em forma de diário a diminui. No primeiro caso, têm-se a visão de conjunto
típica da epopeia, no que se refere ao narrado: o narrador está de posse de um
passado que não pode ser alterado e, quase sempre, narra para falar dele e não
do momento da narração. Já o romance em forma de diário adota a incompletude
desse gênero: relatam-se fatos ocorridos quase ao mesmo tempo em que são
narrados; não há um distanciamento no tempo que permita o controle sobre o
passado; há uma preocupação com o imediato, passado e futuro. Por isso,
trata-se de uma modalidade romanesca que assimila, como diria Bakhtin, a
incompletude da rotina, do cotidiano, como forma de distanciamento do épico,
mas de aproximação do universo do leitor. A configuração permite efeitos de
real que podem produzir o fingimento que engana, que Hamburger considera típica
da primeira pessoa.
A
possibilidade de o romance, incorporando linguagens, não possuir uma que seja
sua, própria do gênero, também o libera para assimilar formas que surpreendem
pela experimentação, pelo ineditismo. A autoficção é um exemplo notável das
assimilações de formas não-literárias, mas também de sua distensão, de sua
renovação através de estratégias experimentais de configuração. Mas elas também
são originais na ficção pura. Uma dessas possibilidades é a assimilação de
formatos como a redação infantil, o relato oral, a confissão religiosa, o
desabafo emocionado. A atitude de fingir que se fala para um tu que não se
manifesta é uma formatação recorrente nas letras de músicas. A narrativa em
primeira pessoa a assimilou de modo produtivo, a partir do momento em que o
romance passou a fingir que não era mais escrita, mas fala. Memórias de Lázaro, de Adonias Filho,
exemplifica a técnica, assim como Lavoura
arcaica, de Raduan Nassar. A fala
como narração aproxima o romance, outra vez, do lírico das letras de música: o
tu pode estar ausente, morto, mas é para ele que se fala; pode estar presente
sem que sua fala seja representada. Ao contrário do que Hamburger dissera,
essas formas são mais recorrentes que especiais. É a cara própria do romance,
conforme Bakhtin o definira.
Basta que se
pense em Diário de um ladrão, de Jean
Genet. Não se trata de um diário, mas de uma autobiografia. Não apenas na
configuração, mas no caráter verídico. No entanto, a configuração inusitada de
uma obra que é autobiografia, intitula-se como diário, mas assume as
especificidades estruturais e narrativas do romance leva o leitor a um poderoso
efeito de estranhamento. A obra está no limite entre a ficção e a autoficção,
no sentido contrário ao modo como Bakhtin dizia que o romance, ficcional, se
aproximava do não-ficcional. Diário de um
ladrão é autobiografia que procurou o efeito de incompletude típico do
diário: não se ter uma visão completa a respeito do passado e de quem se é.
Assim, o autor pode fingir para aquele leitor que de fato sabe quem ele é, que
leu sua biografia, que ele, como homem, ainda está em formação, é um projeto a
ser construído junto com a configuração da obra.
Tanto Hamburger quanto Bakhtin já haviam
percebido o quanto a narrativa em primeira pessoa se aproximava da realidade,
como efeito. Ela via nessa possibilidade um fingimento capaz até de enganar o
leitor; para ele, esse fingimento menos enganava que desnudava o real. Trata-se
de uma estratégia que rende possibilidades sempre renovadas em termos de
elaboração estética.
*Professor no Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE
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