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sexta-feira, 12 de maio de 2017

SER FEMINISTA: O GRANDE DESCOMPASSO DA ACADEMIA BRASILEIRA



* Prof. Dra. Greicy Pinto Bellin


Representativo de considerável ruptura epistemológica e um dos aspectos responsáveis pelo que Suart Hall, em Identidade cultural na pós-modernidade, chama de “descentramento do sujeito”, o feminismo se coloca como uma grande charada acadêmica para aqueles que persistem na crença de que a literatura é simplesmente um objeto estético livre de conotações sociais. Tal crença, que hoje se encontra bastante ultrapassada, ainda coloca entraves para o pleno desenvolvimento de um pensamento feminista na academia, ideia esta defendida por Rita Terezinha Schmidt no artigo “Refutações ao feminismo: (des) compassos da cultura letrada brasileira”, publicado pela Revista de Estudos Feministas em 2006.

Na visão da autora, o que ela chama de “refutação ao feminismo” nada mais é do que a representação de um pensamento patriarcal e misógino que desacredita os avanços da crítica feminista no ambiente acadêmico, em uma repulsa ao politicamente correto que mimetiza, ao fim e ao cabo, um pensamento antiamericano que, há muitos anos, se encontra disseminado e até mesmo, enraizado na própria sociedade brasileira. Em seu artigo, Schmidt, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realiza uma verdadeira arqueologia da submissão feminina ao analisar os séculos de dominação patriarcal que explicariam e justificariam a existência desta mesma submissão, apontando para o ranço antifeminista nutrido pelo jornalismo cultural dos anos 90, que teria se apropriado da figura de Camile Paglia, para ela uma pensadora sem projeção acadêmica nos Estados Unidos, a fim não de empreender um debate produtivo a respeito do feminismo, mas de reforçar uma postura antiamericana e antifeminista. À parte os questionamentos em relação à postura da autora, cuja argumentação é bastante provocativa mas concentra-se basicamente em criticar o establishment acadêmico sem oferecer uma solução inovadora para o problema do antifeminismo que tanto a incomoda, surge uma questão que, acredito, inquieta tanto as teóricas feministas quanto aqueles que divergem do feminismo: o que é, afinal, ser feminista? Em que medida o “ser feminista” pressupõe, necessariamente, uma demonização da cultura tida como patriarcal, ou, até mesmo, um ataque virulento a uma vertente teórico-crítica preocupada em analisar o texto literário como artefato estético, sem levar em consideração as ditas “construções sociais” que permeiam este mesmo texto? Vale ressaltar que não percebo o viés estético como plenamente equivocado, como querem a maioria das feministas, tendo em vista que texto literário é arte e não documento. Ao mesmo tempo, seria ingênuo negar a natureza social do literário, relacionada a dimensões de produção, recepção e circulação dos textos. Sem querer entrar na batalha entre formalismo e sociologismo, velha conhecida dos adeptos e estudiosos da teoria literária, o que tenciono apontar é a zona limítrofe a partir da qual se delineia o lugar da feminista, que se constituiria, como quer Elaine Showalter, em um “território selvagem”. Mas será que este território precisa necessariamente ser selvagem para ser feminista, ou vice-versa? Poderia o feminismo se libertar da dependência de uma discursividade marcadamente contestadora para se constituir em uma vertente    sustentada em pressupostos muito próprios e criados no interior de sua própria esfera discursiva?

Creio que as respostas a estas perguntas não podem ser dadas de imediato. Todavia, a própria crítica feminista possui os elementos para que se possa, pelo menos, vislumbrar uma possibilidade de resposta aos questionamentos que aqui coloco. A libertação em relação a uma discursividade contestadora já foi apontada pela ginocrítica, segundo a qual apenas realizar a arqueologia do patriarcado e apontar as razões para a dominação, como Rita Terezinha Schmidt faz em muitos momentos de seu artigo, não é o suficiente para se estabelecer uma vertente teórica de cunho feminista. A sustentação de pressupostos próprios, por sua vez, é também defendida pela ginocrítica, mais especificamente na reivindicação por uma “cultura da mulher” ou “espaço da mulher”, que, por um lado, tende a cair em um essencialismo, afinal, o que é ser mulher? À parte, mais uma vez, os questionamentos sempre inevitáveis inerentes a um debate feminista, o que se observa é a possibilidade, fornecida pelo próprio feminismo, de se construir uma identidade autônoma não apenas em relação ao patriarcado e a séculos de submissão, mas em relação aos próprios pressupostos da crítica feminista, que tendem a se converter em um novo aprisionamento, perpetuando, assim, o ciclo de uma dominação que não é apenas patriarcal, mas ideológica.

Ser feminista, portanto, é ser livre, mas não da liberdade almejada pelas feministas, uma liberdade que, no final das contas, também cerceia e aliena, uma vez que baseada em uma oposição à lógica de dominação patriarcal. O que se percebe, muitas vezes, é que as feministas encenam contra si próprias o que Rita Schmidt chama de “refutação ao feminismo”, projetando tal refutação na academia, demonizada como opressora. Uma conscientização em relação a este mecanismo de projeção seria o ponto de partida para a conquista de uma maior liberdade teórica para as feministas, resultando, em consequência, em nova e tão almejada libertação intelectual. 


Referências

SCHMIDT, Rita Terezinha. Refutações ao feminismo: (des) compassos da cultura letrada brasileira. Estudos Feministas, Florianópolis, 14(3): 272, setembro-dezembro/2006, p. 765-799.

SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-55.  

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. O estranho horizonte da crítica feminista no Brasil. In: SUSSEKIND, Flora; DIAS, Tania; AZEVEDO, Carlito (org). Vozes femininas: gênero, mediações e práticas e escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. p. 15-25.

* Professora do Curso de Mestrado em Teoria Literária
da UNIANDRADE
         

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