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terça-feira, 3 de abril de 2018

AUTOFICÇÃO OU AUTOBIOGRAFIA


Luiz Zanotti*

Autobiografia talvez seja um dos primeiros gêneros no mundo, pois as pessoas têm a tendência de querer registrar os seus feitos, e esta tendência é ainda mais exacerbada na sociedade dos indivíduos (Norbert Elias, 1994) que mostra como tendência a individualidade. Assim, alguns críticos, como por exemplo, Doubrousky, procura criar um novo gênero, a quem ele chama autoficção,
Este “novo” gênero tem sua gênese num debate entre Doubrousky e Philippe Lejeune que no seu livro Le pacte autobiographique  (1987, p. 31), problematizava a possibilidade de existir um romance onde o autor era a própria personagem, apesar de ser um assunto menor pois, como sabemos o resultado estético da obra está acima desta escolha.  Nesta perspectiva, Doubrovsky resolveu escrever um romance autoficcional, criando este neologismo, que consideramos longe de adquirir um caratê de gênero.
A verdade é que a autobiografia tem toda uma característica de descrição de fatos verdadeiros, o que nos lembra Hayden White na sua problematização entre história e literatura na busca da realidade.  O teórico inglês Hayden White que afirma que a narrativa histórica apenas se diferencia da narrativa literária pelo conteúdo, visto que os métodos de historiadores ou escritores literários são os mesmos. De acordo com ele, o trabalho histórico utiliza como “veículo” a narrativa, elaborada através de uma representação ordenada e coerente de acontecimentos. Assim, White conclui que toda explanação histórica é retórica e poética por natureza.
A meta-história − estudo referente à História enquanto historiografia − de White representa uma abordagem construtiva para a historiografia porque incentiva a reflexão sobre a questão da verdade. O conceito de História como narrativa põe em questão as pretensões de verdade e a objetividade do trabalho dos historiadores. Segundo Norman Wilson, White considera as narrativas históricas como ficções verbais, com seus conteúdos sendo tanto inventados quanto comprovados. Desta forma, as narrativas históricas seriam ficções que teriam mais relação com a literatura do que com a ciência.
Na contemporaneidade, essa constatação torna-se muito importante, pois a História abandona a pretensão de uma verdade “absoluta” que, supostamente, poderia ser obtida através de documentos históricos. O filósofo francês Michel Foucault em seu livro A arqueologia do saber (1969) apresenta essa antiga busca pelos documentos que diziam a verdade, e com que direito podiam pretendê-lo, se eram sinceros ou falsificadores, bem informados ou ignorantes, autênticos ou alterados.Essa posição acerca de um documento foi mudada. Agora a História considera como sua tarefa primordial não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo como uma materialidade documental, ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações.
Essa impossibilidade de se alcançar uma verdade insofismável é abordada pelo historiador francês François Dosse citar o processo de Maurice Papon[1], em que historiadores de ofício foram convocados ao pretório. Ele alerta contra o exagero e o grande risco de o historiador engajar-se no juramento jurídico de dizer toda a verdade, traduzindo uma situação de desconforto e de dúvida quanto ao seu estatuto.
Desta forma, a diferença fundamental entre a autobiografia e a autoficção seria o acordo com a verdade, que como vemos no ensaio Matéria e memória (1990) de Henry Bergson, é extremamente frágil, pois na relação entre imagens e lembranças é importante notar que tanto o passado como o presente continuam ativos, circunscrevendo os limites de nossa interpretação. Para Bergson (1990, p. 62), este conceito de imagens-lembrança identifica apenas a parte inteligível da relação com os objetos, onde, ao invés de experimentarmos as imagens, as identificamos, tentando recuperar sua claridade e, principalmente, sua utilidade em nossas vidas.
Assim, ao buscarmos as nossas memórias, identificamos um outro tipo de imagem, que não apenas reconhece por hábito uma atividade passada de nossa vida, mas que “recria” esse passado: as imagens-ação. Das imagens-ação, esperamos sempre ter uma atitude voltada para o presente, mas para um presente sensível, que tem a memória como uma forma criadora do passado.




[1] Oficial do governo francês de Vichy que colaborou com o Regime Nazista.
 

*Professor do Mestrado em Teoria Liteéria da UNIANDRADE

 
 

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