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quinta-feira, 19 de abril de 2018

NOVAS FORMAS DO TEXTO MÚLTIPLO E INTERMIDIÁTICO


Prof.ª. Dra. Verônica Daniel Kobs*

O primeiro texto a ser analisado é o livro S., de J. J. Abrams e Doug Dorst. Considerando apenas capas e contracapas, a duplicidade se faz complexa para o leitor: a caixa de S. traz um selo, que serve de lacre e que, quando rompido, dá acesso ao volume de Straka. Esse jogo entre ficção e realidade (na qual Straka é autor, mas ao mesmo tempo personagem) é próprio da metalinguagem e também será, nesta análise, um elemento-chave para o jogo estabelecido com o leitor e para a multiplicidade, temas que serão discutidos posteriormente.

Figura 1: Livro S., de J. J. Abrams e Doug Dorst: a caixa preta contém o exemplar de O navio de Teseu, de V. M. Straka (ABRAMS; DORST, 2013).
Em quase todas as páginas, a história divide espaço com anotações de duas pessoas, Eric e Jen. Ele estuda a obra de Straka desde os 15 anos e passou a investigar a identidade do autor com a ajuda de Jen. Os dois alunos trocam o livro constantemente e se comunicam pelas notas que fazem à margem, à caneta. Quanto à estrutura do livro, tomemos como base o conceito de transtextualidade, de Gerard Genette, que abrange o paratexto: “[...] título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios” (GENETTE, 2005, p. 9), além dos elementos já citados anteriormente, três assumem grade importância na história: as notas de rodapé e o prefácio, ambos assinados por Félix/Filomela, e as anotações de Jen e Eric, escritas à margem das páginas. Aliás, o livro traz 24 anexos, todos de caráter extraliterário e cada um em uma página adequada, já que a maioria deles é resultado de um comentário escrito por Eric ou Jen, quando há necessidade de comprovar ou mostrar algo. Evidentemente, os anexos também introduzem outros textos e outras artes ou mídias na narrativa, o que corresponde aos conceitos de intertextualidade (a exemplo de uma carta ou de um telegrama), interartes (como, por exemplo, quando o leitor encontra uma foto) e intermidialidade (cujo exemplo pode ser o artigo de jornal).
No aspecto estrutural, essa multiplicidade corresponde ao que Linda Hutcheon caracteriza como “that complex Chinese-box mise en abyme structure typical of so much metafiction” (HUTCHEON, 2014, p. 105, grifo no original). Wallace Martin corrobora essa afirmação, pois conceitua a metaficção como “embedded narration” (MARTIN, 1991, p. 135). Para demonstrar a estrutura múltipla e encadeada de S. e também para aproximá-la das considerações de Hutcheon e Martin, observem-se as figuras a seguir:
  
Figura 2: Caixa chinesa. Imagem disponível em: <https://niagaraatlarge.com>
 
 
 Ambas as imagens enfatizam o caráter múltiplo, no sentido literal do termo. Entretanto, o significado de usar essa estrutura, em um texto literário, hoje, vai muito além do nível quantitativo: “Metaficcional deconstruction [...] has also offered extremely accurate models for understanding the contemporary experience of the world as a construction, an artifice, a web of interdependent semiotic systems” (WAUGH, 1993, p. 9). Portanto, o esquema narrativo de S., plural e intricado, serve de metáfora para o mundo e para a vida, correspondendo perfeitamente à concepção de Italo Calvino (1998), no que diz respeito à multiplicidade.
O segundo exemplo analisado aqui é o filme Homens, mulheres & filhos, de Jason Reitman, que usou como base o romance de mesmo nome, de Chad Kultgen. A alternância, associada à narrativa rápida e aberta, relaciona-se, tanto no livro como no filme, ao dialogismo, à intertextualidade e ao aspecto multimidiático. O primeiro item pode ser exemplificado com os nomes de programas de TV (Two and a half men e American Idol, entre outros), a filosofia de Noam Chomsky e o jogo preferido de Tim (World of Warcraft). Como intertexto, a obra do astrônomo Carl Sagan (Pálido ponto azul) tem importância decisiva, principalmente no filme. Enquanto, no romance, trechos desse livro são frequentes na história de Tim Mooney e na epígrafe, no filme a interferência deles é maior. Outro exemplo de intertextualidade, mas agora vinculado às diversas mídias, é a comunicação dos personagens por meio de aplicativos de mensagens. Para isso, o diretor decidiu variar o layout das mensagens, a fim de enfatizar a verossimilhança. Gareth Smith, designer chefe do filme, explicou essa escolha da equipe de produção: “[...] cada app de mensagem de texto tem um visual. Então, queríamos refletir isso na tela [...]” (HOMENS, 2014).
Devido ao fato de o enredo ser atual e representar o cotidiano (de casais, famílias, adolescentes em casa e na escola), e considerando o predomínio da tecnologia hoje, livro e filme apresentam situações em que a convivência “física” sofre interferência de mídias diversas, que remodelam as relações interpessoais, fragmentando-as, anulando-as ou estabelecendo contatos paralelos e virtuais. Tal variedade justifica uma afirmação de Italo Calvino, que se referiu ao século XXI como uma “época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea” (CALVINO, 1998, p. 58, grifo no original).
Segundo o designer do filme, desde o início o projeto do diretor foi refletir, na tela, o modo como as pessoas utilizam o computador e o celular hoje em dia. Isso resultou em uma nova “geografia da tela”, transformando-a “em uma espécie de área de trabalho” (HOMENS, 2014). Assim, os elementos tradicionais da cena, no cinema, tornam-se acessórios. Nos exemplos abaixo, as imagens da tela do computador interferem de modo decisivo no processo de filmagem, exigindo que o set fosse disposto de modo distinto. Dessa forma, posteriormente, a cena teria um lugar adequado para receber a sobreposição da imagem da tela do computador. Utilizando o mesmo recurso técnico, também a tela do celular ganha destaque no filme, de modo que o espectador possa visualizar em primeiro plano uma tela específica ou os textos das telas de vários aparelhos, simultaneamente.

  Figura 4: Cenas em que o diretor utiliza as telas dos computadores como imagens sobrepostas (HOMENS, 2014)

Figura 5: Cenas com sobreposições da telas de um celular e dos aparelhos de várias pessoas (HOMENS, 2014)
  
Na cena que mostra os vários aparelhos (acima, à direita), uma interface foi criada para cada personagem e para cada figurante: “Tivemos que criar a parte gráfica para cerca de 45 pessoas” (HOMENS, 2014). Esse exemplo demonstra que a intermidialidade sugeriu novas possibilidades à linguagem cinematográfica. Conforme Denise Guimarães: “[…] em grande parte da arte contemporânea, os recursos tecnológicos propiciam uma investigação criativa, uma vez que libertam os artistas do atrelamento a modelos e conceitos preexistentes. […] tal liberdade, inclusive, pode viabilizar interessantes trocas sígnicas entre arte e tecnologia.  (GUIMARÃES, 2007, p. 39)

REFERÊNCIAS

ABRAMS, J. J.; DORST, D. S. Rio de Janeiro: Intrínseca; Santa Mônica (Califórnia): Bad Robot; New York: Melcher Media, 2013.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
GENETTE, G. Palimpsestos. A literatura de segunda mão. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
GUIMARÃES, D. A. D. Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina, 2007.
HOMENS, mulheres & filhos. Direção de Jason Reitman. EUA: Paramount Pictures e Right of Way Films; Paramount Pictures, 2014. 1 DVD (119 min); son.
HUTCHEON, L. Narcissistic narrative: The metafictional paradox. Canadá: Wilfried Laurier University, 2014.
KULTGEN, C. Homens, mulheres & filhos. Rio de Janeiro: Record, 2014.MARTIN, W. Recent theories of narrative. Ithaca: Cornel University, 1991.
WAUGH, P. Metafictional: The theory and practice of self-conscious fiction. New York: Routledge, 1993.

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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. E-mail: veronica.kobs@fae.edu Este artigo é vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia Cardoso.

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