Pesquisar este blog

segunda-feira, 29 de abril de 2019


Ambiência e stimmung em “A queda da casa de Usher”

Profa. Dra. Greicy Pinto Bellin

UNIANDRADE

 

Exaustivamente lido e relido ao longo dos anos como um clássico do conto de terror, “A queda da casa de Usher” foi adaptado para o cinema sob o título de La Chute de la Maison Usher por Jean Epstein em 1928, e ilustrado pelo britânico Harry Clarke, artista de grande destaque no movimento Arts and Crafts. Tanto as adaptações quanto as interpretações do conto acabam por circunscrevê-lo em um simulacro de horror, mistério e morte, só para citar a fórmula, em certa medida um clichê, que permeia a leitura crítica de Poe. Tal leitura, ainda que involuntariamente, negligencia aspectos materiais do conto que são fundamentais para a compreensão da temática e para a construção do próprio efeito de horror tão comentado e analisado pelos críticos. Com base nessa ideia, o objetivo desse artigo é propor uma leitura materialista de “A queda da casa de Usher” a partir dos conceitos de ambiência e stimmung desenvolvidos por Hans Ulrich Gumbrecht, a fim de dedicar uma maior atenção a esses elementos e revelar, sem exagero, o que se poderia chamar de faceta materialista de Edgar Allan Poe.

Em primeiro lugar, cabe uma definição dos conceitos que serão utilizados nessa análise, os quais encontram desenvolvimento em Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre um potencial oculto da literatura, de Hans Ulrich Gumbrecht, publicado no Brasil no ano de 2014. Nele, o pesquisador alemão, conhecido por explorar as possibilidades de uma análise não-hermenêutica da literatura, as quais envolvem uma atenção maior dada à forma e à estrutura, propõe que os pesquisadores da literatura como um todo voltem seus olhos para o stimmung, isto é, para sensações específicas induzidas por aspectos materiais como a prosódia de um texto. A esse respeito, afirma Gumbrecht:

“Ler com a atenção voltada ao Stimmung” sempre significa prestar atenção à dimensão textual das formas que nos envolvem, que envolvem nossos corpos, enquanto realidade física - algo que consegue catalisar sensações interiores sem que questões de representação estejam necessariamente envolvidas. De outro modo, seria impensável que a declamação de um texto lírico, ou a leitura em voz alta de uma obra em prosa, com ênfase na componente rítmica, alcançasse e afetasse mesmo aqueles leitores ou ouvintes que não compreendem a língua das obras em questão. De fato, existe uma afinidade especial entre a performance e o Stimmung.  (GUMBRECHT, 2014, p. 14).               

           A proposta de Gumbrecht está relacionada a um questionamento do foco exclusivo no modelo de leitura que prioriza a interpretação nos textos literários, questionamento esse que, aliás, movimenta o campo não-hermenêutico como um todo e desestabiliza a ideia segundo a qual o texto literário seria, exclusivamente, produto de fatores sociais e culturais. Não se trata, todavia, de excluir tais fatores da análise literária, e sim de procurar outros enfoques e elementos que percebam o texto como produto um artístico, independente das condições que lhe deram origem. Nesse sentido, a ambiência, que corresponde, nas palavras de Gumbrecht, a “alguma coisa objetiva que está em volta das pessoas e sobre elas exerce uma influência física” (GUMBRECHT, 2014, p.12), também deve ser considerada, tendo em vista, até mesmo, a importância da caracterização do espaço na literatura. Tal ambiência é perceptível em “A queda da casa de Usher”, pois tanto a arquitetura da mansão em decadência quanto a atmosfera do dia outonal e sombrio em que o narrador chega ao solar são as responsáveis pela criação das sensações de horror nesse mesmo narrador, as quais passam a afetar o próprio leitor ao longo de toda a narrativa:

Durante todo um pesado, sombrio e silente dia outonal, em que as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, estive eu passeando, sozinho, a cavalo, através de uma região do interior, singularmente tristonha, e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto do melancólico Solar de Usher. Não sei como foi, mas ao primeiro olhar sobre o edifício invadiu-me a alma um sentimento de angústia insuportável, digo insuportável porque o sentimento não era aliviado por qualquer dessas semi-agradáveis, porque poéticas, sensações com que a mente recebe comumente até mesmo as mais cruéis imagens naturais de desolação e terror. (POE, 2001, p. 244).
 
             É importante ressaltar que a sensação de melancolia e a “angústia insuportável” são causadas pelo “primeiro olhar sobre o edifício”, o que remete ao impacto de um componente arquitetônico sobre o espírito do narrador, impacto esse que será reforçado pela visão efetiva da casa de Usher:

Desembaraçando o espírito do que devia ter sido um sonho, examinei mais estreitamente o aspecto real do edifício. Sua feição dominante parecia ser a duma excessiva antiguidade. Fora grande o desbotamento produzido pelos séculos. Cogumelos miúdos se espalhavam por todo o exterior, pendendo das goteiras do telhado como uma fina rede emaranhada. Tudo isso, porém, estava fora de qualquer deterioração incomum. Nenhuma parte da alvenaria havia caído e parecia haver uma violenta incompatibilidade entre sua perfeita consistência de partes e o estado particular das pedras esfarinhadas. Isto me lembrava bastante a especiosa integridade desses velhos madeiramentos que durante muitos anos apodreceram em alguma adega abandonada, sem serem perturbados pelo hálito do vento exterior. Além deste índice de extensa decadência, porém, dava o edifício poucos indícios de fragilidade. Talvez o olhar dum observador minucioso descobrisse uma fenda mal perceptível que, estendendo-se do teto da fachada, ia descendo em ziguezague pela parede, até perder-se nas soturnas águas do lago. (POE, 2001, p. 246).
 
             Logo mais descobriremos que a decadência do edifício encontra-se em estreita e bizarra simbiose com a decadência da própria família, a qual apresenta um componente biológico expresso na existência de uma condição psiquiátrica peculiar, passada de geração em geração, e nas insinuações de consanguinidade e incesto, as quais, aliás, eram características das famílias aristocráticas europeias. A relação entre a arquitetura da mansão e a evocação de sensações peculiares no narrador pode ser novamente reforçada na passagem a seguir:

Havia um enregelamento, uma tontura, uma enfermidade de coração, uma irreparável tristeza no pensamento, que nenhum incitamento da imaginação podia forçar a transformar-se em qualquer coisa de sublime. Que era – parei para pensar – que era o que tanto me perturbava à contemplação do Solar de Usher? Era um mistério inteiramente insolúvel; e eu não podia apreender as ideias sombrias que se acumulavam em mim ao meditar nisso. Fui forçado a recair na conclusão insatisfatória de que, se há, sem dúvida, combinações de objetos muito naturais que têm o poder de assim influenciar-nos, a análise desse poder, contudo, permanece entre as considerações além da nossa argúcia. (POE, 2001, p. 244).
 
              O narrador atribui seu estado de espírito a “combinações de objetos muito naturais que têm o poder de assim influenciar-nos”, o que será reforçado paulatinamente na narrativa a partir da constatação do estado de espírito de Roderick Usher, expresso na descrição do físico decadente e assustador que serviria de base para a criação, anos depois, do herói Des Esseintes de Às avessas, de J. K. Huysmans:

Uma compleição cadavérica; um olhar amplo, líquido e luminoso, além de qualquer comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de uma curva extraordinariamente bela; nariz de delicado modelo hebraico, mas com uma amplidão de narinas incomum em tais formas; um queixo finamente modelado, denunciando, na sua falta de proeminência, a falta de energia moral; cabelos de mais tenuidade e maciez que fios de aranha; tais feições e um desenvolvimento frontal excessivo, acima das regiões das têmporas, compunham uma fisionomia que dificilmente se olvidava. E agora, pelo simples exagero dos característicos dominantes desses traços e da dança que não reconheci logo com quem falava. A lividez agora cadavérica da pele e o brilho sobrenatural do olhar, principalmente, me deixaram atônito e mesmo horrorizado. Também o cabelo sedoso crescera à vontade, sem limites; e como ele, na sua tessitura de aranhol, mais flutuava do que caía em torno da face, eu não podia, mesmo com esforço, ligar sua aparência estranha com a simples ideia de humanidade (POE, 2001, p. 247).

                 A descrição detalhada da aparência de Usher evoca a decadência e a fragilidade de toda uma estirpe, corroborando a atmosfera sobrenatural da narrativa, bem como o stimmung de desagregação evocado a partir da descrição da própria mansão, a qual, conforme descobriremos, mimetiza a personalidade de Usher e de sua irmã Madeline:

Impressionou-me logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência; e logo verifiquei que isso nascia de uma série de lutas fracas e fúteis para dominar uma perturbação habitual, uma excessiva agitação nervosa. Na verdade, eu me achava preparado para encontrar algo desta natureza, não só pela carta dele como por certas recordações de fatos infantis e por conclusões derivadas de sua conformação física e temperamento especiais. Seu modo de agir era alternadamente vivo e indolente. Sua voz variava, rapidamente, de uma indecisão trêmula (quando a energia animal parecia inteiramente ausente) àquela espécie de concisão enérgica, àquela abrupta, pesada, pausada e cavernosa enunciação, àquela pronúncia carregada, equilibrada e de modulação guturalmente perfeita que se pode observar no ébrio contumaz ou no irremediável fumador de ópio durante os períodos de sua mais intensa excitação. (POE, 2001, p. 248).
 
            É importante destacar, para a análise ora desenvolvida, a variação do tom de voz observada pelo narrador, outro componente material que remete à fragilidade e até mesmo, à histeria de Usher, atribuída, também, ao uso de ópio. O narrador acaba por descobrir que Lady Madeline padece do mesmo mal que acomete o irmão, sendo que sua presença física é causadora de sensações opressoras e desconfortáveis: 

Enquanto ele falava, Lady Madeline (pois era assim chamada) passou lentamente para uma parte recuada do aposento e, sem ter notado minha presença, desapareceu. Olhei-a com extremo espanto não destituído de medo. E contudo achava impossível dar-me conta de tais sentimentos. Uma sensação de estupor me oprimia, enquanto meus olhos acompanhavam seus passos que se afastavam. Quando afinal se fechou sobre ela uma porta, meu olhar buscou (...) a fisionomia do irmão. Mas ele havia mergulhado a face nas mãos e apenas pude perceber que uma palidez bem maior do que a habitual se havia espalhado sobre os dedos emagrecidos, através dos quais se filtravam lágrimas apaixonadas. (POE, 2001, p. 248-249).

Com o desenrolar da narrativa, o narrador vem a descobrir que aspectos materiais e arquitetônicos conformam crenças sobrenaturais alimentadas por Roderick Usher, o que reforça a relevância da caracterização do espaço como criadora e propulsora da extrema sensitividade e sensibilidade do personagem:

Esta crença (...) estava ligada (...) às cinzentas pedras do lar de seus antepassados. As condições da sensitividade tinham sido aqui, imaginava ele, realizadas pelo método de colocação dessas pedras na ordem de seu arranjo, bem como na dos muitos fungos que as revestiam e das árvores mortas que se erguiam em redor, mas, acima de tudo, na longa e imperturbada duração deste arranjo e em sua reduplicação nas águas dormentes do lago. A prova (...) da sensitividade – haveria de ver-se, dizia ele (...) na gradual ainda que incerta condensação duma atmosfera que lhes era própria, em torno das águas e dos muros. O resultado era discernível, acrescentava ele, naquela influência silenciosa, embora importuna e terrível, que durante séculos tinha moldado os destinos de sua família, e fizera dele, tal como agora o via, o que ele era. (POE, 2001, p. 251).

            Alia-se a isso o que o narrador chama de “estado mórbido do nervo acústico”, condição peculiar experimentada por Usher e que o torna ainda mais suscetível às crenças no sobrenatural, em especial aquelas relacionadas a devaneios artísticos movidos a música, pintura e leitura de obras de filosofia, ciência e misticismo:

Foram talvez os estreitos limites a que ele assim se confinou na guitarra que deram origem, em grande parte, ao caráter fantástico das suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de seus impromptus não podia ser assim explicada. Eles devem ter sido – e eram, nas notas bem como nas palavras de suas estranhas fantasias (pois ele frequentemente se acompanhava com improvisações verbais ritmadas) – o resultado daquela intensa concentração e recolhimento mental a que eu antes aludi, observados apenas em momento especiais da mais alta excitação artificial. (POE, 2001, p. 250).
 
            A audição enquanto componente material adquire ainda maior relevância quando Usher, após enterrar viva sua irmã Madeline, começa a ouvir barulhos sinistros emanados do local do sepultamento, os quais consistem em claros indícios de que ela havia sido enterrada ainda com vida. A intensidade dessas sensações atinge seu auge no trecho a seguir, no qual a ambiência tempestuosa funciona como complemento da angústia experimentada tanto pelo narrador quanto pelo próprio Usher: 

A fúria impetuosa da rajada que entrava quase nos elevou do solo. Era, na verdade, uma noite tempestuosa, embora asperamente bela, uma noite estranhamente singular, no seu terror e na sua beleza. Um turbilhão, aparentemente, desencadeara sua força na nossa vizinhança, pois havia frequentes e violentas alterações na direção do vento e a densidade excessiva das nuvens (que pendiam tão baixo como a pesar sobre os torreões da casa) não nos impedia de perceber a velocidade natural com que elas se precipitavam, de todos os pontos, umas contra as outras, sem se dissiparem na distância (...) as superfícies inferiores das vastas massas de vapor agitado, bem como todos os objetos terrestres imediatamente em torno de nós, estavam cintilando à luz sobrenatural de uma exalação gasosa, fracamente luminosa e distintamente visível, que pendia em torno da mansão, amortalhando-a. (POE, 2001, p. 254).


A audição é aspecto fundamental para a articulação do terror experimentado por ambos os personagens, especialmente a partir do momento em que o narrador inicia a leitura de Mad Trist, de Sir Launcelot Canning. Observam-se coincidências entre os tinidos do escudo de Etelredo, o herói que derrota o dragão na narrativa de Canning, e ecos esparsos que anunciam a volta de Lady Madeline, o que vai progressivamente reforçando a ambiência de horror, mistério e morte que o retorno da morta-viva é capaz de causar:

- Não o ouves? Sim, ouço-o, e tenho-o ouvido. Longamente... longamente... muitos minutos, muitas horas, muitos dias tenho-o ouvido, contudo não ousava...Oh, coitado de mim, miserável, desgraçado que sou! Não ousava... não ousava falar! Nós a pusemos viva na sepultura! Não disse que meus sentidos eram agudos? Agora eu lhe conto que ouvi seu primeiro fraco movimento, no fundo do caixão. Ouvi-o faz muitos minutos, muitos dias, e contudo não ousei... não ousei falar! E agora, esta noite... Etelredo... ah, ah, ah!... o arrombamento da porta do eremita, e o estertor de agonia do dragão, e o retinir do escudo! Diga, antes, o abrir-se do caixão, e o rascar dos gonzos de ferro de sua prisão, e o debater-se dela dentro da arcada de cobre da masmorra! Oh! Para onde fugirei? Não estará ela aqui, dentro em pouco? Não estará correndo a censurar-me por minha pressa? Não ouvi eu o tropel de seus passos na escada? Não distingo aquele pesado e horrível bater de seu coração? Louco! (POE, 2001, p. 256-257).

Todas as sensações experimentadas por Usher estruturam-se em torno do exercício de uma audição aguda e extremamente ativa, a partir da qual ele identifica todos os movimentos envolvidos no retorno da irmã, o que lhe causa grande horror, pois ele fora o responsável pelo seu enterro prematuro. O ápice do terror se observa com o desabamento da estrutura arquitetônica que havia provocado a insanidade e os tormentos sobrenaturais de Usher, corroborando a relação simbiótica entre espaço, ambiência, stimmung e loucura absoluta:
 
Enquanto eu a olhava, aquela fenda rapidamente se alargou... sobreveio uma violenta rajada do turbilhão... o inteiro orbe do satélite explodiu imediatamente à minha vista... meu cérebro vacilou quando vi as possantes paredes se desmoronarem... houve um longo e tumultuoso estrondar, semelhante à voz de mil torrentes... e o pântano profundo e lamacento, a meus pés, fechou-se, lúgubre e silentemente, sobre os destroços do “Solar de Usher”. (POE, 2001 p. 257).

O desmoronamento da mansão é, por si só, um espetáculo material, conduzindo à destruição irremediável do clã dos Usher. Não seria exagerado, dessa maneira, afirmar que o conto de Poe, para além das leituras que o percebem como representativo de uma literatura de horror, possui uma faceta materialista cuja exploração se revela fundamental para a compreensão dos mecanismos de produção do próprio sentimento de horror e da criação deste mesmo horror ao longo do processo de leitura. Com base nessa ideia, também não seria equivocado afirmar que “A queda da casa de Usher” proporciona a experiência estética que não apenas remeteria à experiência fin-de-siècle que seria explorada pelo movimento decadentista, mas também à maestria do próprio Poe enquanto artista de vanguarda.

 

Referências
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência e stimmung: sobre um potencial oculto da literatura. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

HUYSMANS, J. K. Às avessas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
POE, Edgar Allan. Obra completa. Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

Nenhum comentário:

Postar um comentário