Pesquisar este blog

terça-feira, 24 de setembro de 2019


REQUIEM PARA TONI MORRISON (1931-2019)


Mail Marques de Azevedo
 

A escritora que elevou a literatura afro-americana ao grau máximo de visibilidade internacional, com a recepção do Prêmio Nobel de Literatura, em 1993, faleceu há pouco mais de um mês, aos 88 anos de idade. A escolha de sua obra como tema de minha tese de doutorado, intitulada The Nonessential Victim in a Persecution Text: a Reading of Toni Morrison’s The Bluest Eye, defendida na USP em 1998, iniciou-me no estudo da literatura de minorias e motivou pesquisas posteriores em literatura afro-brasileira e literaturas pós-coloniais. O aprendizado resultou não apenas da extensiva pesquisa bibliográfica realizada, mas do contato com a força vibrante da escrita de Toni Morrison, que fez de sua obra uma baliza no continuum da arte afro-americana. Como homenagem de gratidão, este trabalho comenta alguns dos traços que Morrison considerava indispensáveis para fazer de seus romances a versão impressa das estórias narradas pelo griot, o contador de estórias da tribo. Para isso buscou sempre estabelecer uma relação afetiva de partição com o leitor, num estilo elusivo, mas identificável como próprio da literatura negra: “Minha alegria é quando penso que cheguei perto, minha tristeza quando penso que não consigo chegar lá” (MORRISON, 1984, p. 340).

Para o crítico afro-americano Henry Louis Gates, Jr Morrison definitivamente chegou lá: “Toni Morrison pode bem ser a romancista mais sofisticada da história da literatura afro-americana. Na realidade, sua conquista marcante como escritora é ter conseguido excepcionalmente inventar seu próprio modo de representação literária” (GATES, 1993, p. ix). Em estilo marcadamente próprio e, ao mesmo tempo, representativo da Arte Negra, ela se utiliza do romance para empoderar seu povo a fim de que sobreviva a circunstâncias difíceis, ainda em dias de hoje.


Sei que não posso mudar o futuro, mas posso mudar o passado. É o passado, não o futuro, que é infinito. Nosso passado foi apropriado. E eu sou uma das pessoas que tem de reapropriá-lo. (MORRISON, citada em TAYLOR-GUTHRIE, 1994, p. 14-15)

Morrison reivindica inicialmente fazer com que seu povo seja ouvido e sua presença reconhecida na cultura americana. Na coleção de ensaios Playing in the Dark: Whiteness and the Literary Imagination, Morrison chama a atenção do leitor para a presença do Negro na literatura dos Estados Unidos, presença até então negada ou simplesmente ignorada pela crítica anglo-europeia. Novas interpretações da ficção americana deveriam, portanto, questionar

(...) o conjunto de suposições aceitas convencionalmente por historiadores e críticos da literatura que circulam como ‘conhecimento’. Esse conhecimento afirma que a literatura americana canônica tradicional está não apenas livre da presença que perdura por quatrocentos anos, dos africanos a princípio e, posteriormente, dos afro-americanos nos Estados Unidos, mas também nada lhes deve em termos de influência e forma. (MORRISON, 1993, p. 4-5)

            Mais ainda, Morrison acredita no papel funcional de sua literatura para o fortalecimento da cultura afro-americana, combinando função e estética. A ficção que escreve, como toda arte, é política por inerência e compromissada com o belo. Seu desafio, portanto, é burilar com a linguagem uma cosmologia e perspectiva históricas distintas, frequentemente ignoradas e esquecidas. Uma vez que a expressão artística mais notável dos afro-americanos, que é a sua música – os blues e o jazz - foi apropriada pela cultura dominante, Morrison sente-se na obrigação, como escritora negra, de usar a sua arte para expressar o seu povo.

            De fato, Toni Morrison deplora a perda da tradição afro-americana causada pelo distanciamento da vida comunal e das raízes ancestrais, em consequência da migração maciça dos negros americanos do sul rural para as cidades do norte.

Não moramos mais em lugares onde podemos ouvir essas estórias; os pais não sentam mais para contar aos filhos aquelas estórias mitológicas e arquetípicas, que nós ouvíamos anos atrás. Mas uma nova informação tem de ser transmitida, de qualquer maneira. Uma delas é o romance. (MORRISON, 1984, p. 340)

  Toni Morrison escreveu sete romances em um período de trinta anos, de O olho mais azul, em 1969, a Paraíso, em 1998: Sula (1974), A canção de Salomão (1977), Tar Baby (1981), Amada (1987) a mais conhecida, adaptada para o cinema em 1998, e Jazz (1992). Mais recentemente Amor (2003), A Mercy (2008), Voltar para casa (2012) e Deus ajude essa criança (2015). Seus romances ilustram o “registro pessoal de representação” a que se refere Gates. A autora é muito clara a respeito das perspectivas de seu trabalho:

Se for para confrontar uma realidade diferente da realidade padrão do Ocidente, o meu trabalho deve centralizar e animar informação desacreditada pelo Ocidente – desacreditada não por não ser verdadeira ou importante ou mesmo de algum valor racial, mas por se tratar de informação descrita como “lore” ou “falatório” ou “mágica” ou “sentimento”. (MORRISON, 1989, p. 2)

A informação desacreditada é evidentemente a cultura tradicional negra, transmitida oralmente, que é ignorada como produto de uma raça considerada inferior. A violência física e psíquica contra os negros marcou os quase quatrocentos anos de sua presença nos Estados Unidos da América, desde as primeiras “imigrações” para o país, até o período sombrio da emancipação, quando a alegria da liberdade arduamente conquistada logo deu lugar à realidade crua da matança generalizada de antigos escravos. Ainda se praticam atrocidades contra os negros dez anos após a abolição da escravatura, como enfatizado por Morrison em Amada:

Mil oitocentos e setenta e quatro e os brancos ainda andavam à solta. Pequenas cidades totalmente limpas de sua população negra; oitenta e sete linchamentos em apenas um ano em Kentucky; quatro escolas para negros incendiadas; homens adultos açoitados como crianças; crianças açoitadas como adultos; mulheres negras estupradas, propriedades roubadas, pescoços quebrados. (MORRISON, 1992, p. 180)

           A situação de inferioridade permanece em tempos modernos em forma de preconceito racial. A contribuição positiva dos negros na formação das características do povo americano e de seu modo de vida é totalmente ignorada. Em entrevista de 1989, Morrison revela-se profundamente entristecida a respeito da relação entre pretos e brancos.

O povo negro foi usado sempre  neste país como amortecedor para impedir (...) outros tipos de conflagrações. Se não fosse pelos negros, este país já estaria balcanizado. Os imigrantes teriam cortado as gargantas uns dos outros, como fizeram em outros lugares. Mas quando se tornam americanos, vindos da Europa, o que têm em comum é o desprezo que sentem por mim – é simplesmente uma questão de cor. De onde quer que venham, unem-se para dizer “Eu não sou isso”. Nesse sentido, tornar-se americano baseia-se numa atitude: que exclui a mim. Para eles não era negativo – era unificador. Quando desciam do navio, a segunda palavra que aprendiam era “nigger”. (ANGELO, 1994, p. 255)

Os imigrantes veem-se em situação de crise emocional, física e social aguda. A perda de todos os pontos de referência pode ser compensada direcionando a frustração contra os que lhe são inferiores em todos os aspectos, na perversa escala social do novo país. A ideia de uma vítima – o negro (nigger) – que polariza a agressividade de grupos sociais revela o mecanismo de perseguição por meio do qual a angústia e a frustração coletivas – de imigrantes em face do desconhecido – encontram apaziguamento vicário. A violência praticada contra os afro-americanos, transformados em bode expiatório do grupo social majoritário, é sistemática em toda a história da escravidão e de suas consequências, nos Estados Unidos.

A violência física e psicológica é denominador comum em todos os romances de Morison. Pecola é vítima do ódio concentrado de toda uma comunidade. Sula torna-se pária em sua comunidade, que sente apenas alívio com a morte da personagem. Pilate, a feiticeira benévola de Canção de Salomão, e Baby Suggs, a pregadora africana em Amada, são sacrificadas à dissensão e ao ciúme comunal. Sethe, a mãe escrava fugitiva, no mesmo romance, mata o bebê “que já engatinhava” para impedir que fosse reconduzida à escravidão. Dorcas, a sedutora jovem de Jazz é assassinada pelo amante, num ímpeto de paixão. Durante o funeral, a esposa enraivecida retalha o rosto da morta.

São breves referências que ilustram também o caráter ritualístico da violência nos romances de Morrison, com o envolvimento da comunidade no sacrifício simbólico da vítima. A vítima é principalmente a mulher, o bode expiatório do grupo social majoritário e de uma sociedade patriarcal, cujos membros femininos ocupam a mais baixa das posições na escala social, na percepção de que “não são nem brancas nem homens, e todo tipo de liberdade e triunfo lhes é proibido”, nas palavras do narrador onisciente em Sula (MORRISON, 1973, p. 53).

Decorre dessas considerações a escolha de um dos romances de Morrison para ilustrar a vitimização ritualística da mulher negra como bode expiatório, em um texto de perseguição, como caminho para aprofundar o conhecimento de sua arte literária, em minha pesquisa de doutorado. Por que especificamente O olho mais azul? Com a ação firmemente localizada no espaço e no tempo, a cidade de Lorain, Ohio, no período 1940-1941,, o romance tem características quase históricas contra o pano de fundo das grandes ondas migratórias que levaram milhares de negros do sul agrário para as fábricas e indústrias dos estados do norte e do meio oeste. Foi considerável o impacto cultural sobre pessoas que viviam geralmente em comunidades exclusivamente negras, gerando conflitos e desajuste social. É o contexto ideal para examinar a ação das diferenças e limitações sobre o individuo, e como o sujeito negro reage quando se confronta com as consequências de sua “dupla condição de negro e americano”, na seminal postulação de W.E.B. Du Bois.

A leitura realizada confirmou o caráter de texto de perseguição do romance, mas a compreensão do propósito estético de Morrison de criar uma arte caracteristicamente negra exige que sua obra como um todo seja lida, em contraposição, como texto de resistência, na forma de metáfora estendida do estupro do povo negro por um sistema social injusto.

Os quatro romances da autora, publicados no século vinte e um, confirmam seus propósitos estéticos e a determinação de fazer de sua obra um meio de preservar as tradições culturais afro-americanas. Seu último romance Deus ajude essa criança, publicado em 2015, fecha o ciclo iniciado quase cinco décadas antes, em 1969, com The Bluest Eye. À semelhança de Pecola, a heroína, Lula Ann Bridewell, é discriminada por ter pele profundamente escura. O bebê negro ao nascer provoca surpresa e repulsa: o pai abandona a família e a mãe educa a menina para tratá-la pelo nome, Sweetness, ao invés de chamá-la de mãe. Estão lá os sinais de alteridade: aquele indivíduo que por ser radicalmente diferente, pelos traços físicos ou pela estranheza de costumes, é visto como ameaça em potencial. Em comum com o romance de 1969, os ideais de beleza ligados à pele e aos olhos claros, hoje, como em 1940, propagados pela mídia. Pecola enlouquece, acreditando ter conquistado os olhos azuis que a fariam amada. Bride é uma mulher de sucesso profissional, mas que tem igualmente dificuldade em encontrar o amor. No romance, excepcionalmente situado em tempos atuais, Morrison reafirma as diretrizes de sua obra magistral irrevocavelmente dedicada a preservar a identidade cultural afro-americana: denunciando a violência contra os negros, particularmente a mulher; escrevendo a partir de seu povo e para o seu povo; reivindicando o direito de posse do próprio passado e usando modos literários não realísticos condizentes com suas raízes africanas.  
 

REFERÊNCIAS

ANGELO, B. The Pain of Being Black. An Interview with Toni Morrison. In TAYLOR-GUTHRIE, D. (Ed.) Conversations with Toni Morrison. Jackson: Un. Press of Mississippi, 1994. 

GATES, JR., H. L. Black Literature and Literary Theory. London: Routledge, 1990.

MORRISON, T. The Bluest Eye. New York: Washington Square Press, 1972.

______ . Rootdness: The Ancestor as Foundation. In EVANS, M. (Ed.) Black Women Writers (1950-1980): A Critical Evaluation. New York: Anchor Press, Doubleday, 1984. 339-345.

______. Beloved. New York: Plume, 1988.

______ . Memory, Creation and Writing. In OTTEN, T. The Crime of Innocence in the Fiction of Toni Morrison. Columbia: Un. of Missouri Press, 1989, p. 2.

______ . Playing in the Dark. Whiteness and the Literary Imaginarion. New York: Vintage Books, 1993.

TAYLOR-GUTHRIE, D. (Ed.) Conversations with Toni Morrison. Jackson: Un. Press of Mississippi, 1994.  






 

Nenhum comentário:

Postar um comentário