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quinta-feira, 5 de setembro de 2019


DUAS ESTÉTICAS QUE ILUSTRAM PROXIMIDADES E DISTÂNCIAS

 

Prof. Dr. Edson Ribeiro

 

É bastante conhecida, entre historiadores da arte, a frase de E. H. Gombrich, (1988, p. 411) em sua História da Arte: “Manet é Flaubert; Courbet é Zola”.

O historiador apontava, na pintura, a diferença mais marcante entre o Realismo e o Naturalismo, nos dois escritores que pontificavam nas duas estéticas, na França da segunda metade do século XIX.

Está-se diante de uma obviedade, quando se atenta para aquilo que Luiz Costa Lima (2003, p. 179s) chama de “mimesis da representação” ou da realidade, ou seja, a representação estética como cópia daquilo que constitui o real. Essa mimesis representa, para Costa Lima, uma característica da arte feita antes da modernidade. No entanto, ela está ali. Em Courbet, não há nenhuma surpresa em se enxergar essa cópia como tentativa de documento. O real naturalista não traz, de fato, nada que se possa considerar como novo, em termos daquilo que define qualquer arte: os elementos que compõem sua linguagem.

Courbet não nos nega nada; também não nos entrega nada:


Figura 1: COURBET, Gustave.  Moças peneirando trigo.  Óleo sobre tela. 1854.  Museu de Arte de Nantes.


A preocupação com a representação do real, como cópia, leva o pintor a procurar técnicas que não se pareçam, por exemplo, com o Barroco de Weermer, com suas texturas e efeitos de luz. Courbet só quer a cena, dizer ao seu público que é possível representar a realidade feia de forma dura. Se o movimento da moça não harmoniza as partes da pintura, é considerada brusca, ao mesmo tempo ele chama a atenção para a representação da realidade como documento. Costa Lima não veria, nesta técnica, aquilo que chamou de “mimesis da produção” ou da modernidade. Ou seja, a obra não pretende desnudar, a quem a contempla, a sua própria produção.

Pode-se ver Émile Zola na pintura de Gustave Courbet. Como estética que copia para chamar a atenção para a coisa copiada; a técnica fica a serviço desse real. Trata-se de uma arte que não chega a ser transparente, mas que também não faz da opacidade um contrato de recepção. Basta ler-se o começo de Germinal e a mesma recepção, baseada na transparência e na atenção para a coisa representada, chama a atenção:

 

Na planície rasa, sob a noite sem estrelas, de uma escuridão e espessura de tinta, um homem caminhava sozinho pela estrada real que vai de Marchiennes a Montsou, dez quilômetros retos de calçamento cortando os campos de beterraba. A sua frente, não enxergava nem mesmo o solo negro e somente sentia o imenso horizonte achatado através do sopro do vento de março, rajadas largas como sobre um mar, geladas por terem varrido léguas de pântanos e terras nuas. Nem sombra de árvore manchava o céu; a estrada desenrolava-se reta como um quebra-mar em meio à cerração ofuscante das trevas.

O homem partira de Marchiennes lá pelas duas horas. Caminhava a passos largos, tiritando sob o algodão puído de sua jaqueta e da calça de veludo. Um pequeno embrulho, feito com um lenço de quadrados, incomodava-o bastante; ora o mantinha apertado debaixo de um braço, ora de outro, para poder assim enfiar no fundo dos bolsos as mãos entorpecidas que o açoite do vento leste fazia sangrar. Uma única idéia lhe ocupava o cérebro vazio de operário sem trabalho e sem teto, a esperança de que o frio se tornasse menos agudo com o romper do dia. Havia uma hora que ele caminhava assim, quando percebeu à esquerda, a dois quilômetros de Montsou, uns clarões vermelhos, três braseiros queimando ao ar livre, e como suspensos. A princípio hesitou, tomado de receio; mas logo após não pôde resistir à necessidade dolorosa de aquecer por um instante as mãos. (ZOLA, 2006, p. 8)
 

Germinal é de 1885. Época em que as artes já tinham se acostumado a representarem-se como linguagem opaca. O romance de Zola, tal como a pintura de Courbet, está preocupada com a coisa representada. É um modelo de arte que vai influenciar a modernidade brasileira. Um realismo exacerbado mas que permanece como mimesis da realidade. É difícil ver modernidade ali.

A mimesis da produção é o que diferencia a modernidade da arte feita antes. Mostrar a obra como linguagem e evidenciar seus modos de produção constituem, para Costa Lima, a revolução que dá origem à arte moderna. Para a obra moderna, não interessa copiar o real, mas fazer da própria obra a realidade que interessa.

E Costa Lima toma como marcos do início da modernidade, da mimesis da produção, tanto Baudelaire quanto Flaubert. Madame Bovary, em 1857, inaugura a literatura como obra que se mostra como tecnicamente perfeitamente. É preciso que o leitor a desmonte, que entenda que ali há recursos de linguagem que se destacam da coisa representada, Como mimesis da produção, a modernidade passa a demandar um público que atente para as técnicas, que compare obras e forme aquilo que um dia Wolfgang Iser (1996, p. 101) iria chamar de “repertório”, ou seja, estar de posse dos recursos de que a arte dispõe como linguagem e não como imitação do real.

Gombrich estava certo. Édouard Manet é ainda o precursor da técnica que iria criar a pintura moderna e desencadear as vanguardas em todas as artes. O Impressionismo é ainda um sintoma de opacidade da linguagem, pois Manet é considerado um realista. Seu modo de representar a luz e sua atenção para imagens que valem apenas como motivos para serem representadas fazem dele alguém que chama a atenção para a técnica. Tal como Flaubert, o pintor tem sua obra atacada, proibida, vista como indecente:
 

Figura 2: MANET, Édouard. O almoço sobre a relva. 1863. Óleo sobre tela. Paris, Musée d'Orsay.


No quadro de Manet, não existe aquele realismo documental que, às vezes, é confundido com a verossimilhança. Percebe-se um modo ousado de a obra mostrar-se como linguagem e não realidade. As duas figuras humanas que olham para quem as contempla, que pode ser o pintor que as retrata, tentam passar uma impressão de gratuidade: por que alguém as retrataria em momento tão banal como um almoço? Há sobras de comida. A realidade como cópia não justifica a nudez das mulheres. O que seria uma fuga do real sem se chegar à mitologia. A atenção de Manet para a luz faz com que os pés e os cotovelos da moça toquem de modo irreal aquilo em que se apoiam. A atenção para a paisagem, como representação da luz e não como reprodução de uma realidade considerada digna de ser pintada é uma marca da mimesis da produção nessa obra.

Esse realismo de Manet é, de forma recorrente, chamado de representação da psicologia das figuras pintadas. Haveria, já aí, uma intenção de mostrar aspectos conflitantes da psicologia humana. Meandros como os que Flaubert, como realista que construía sua narrativa a partir de pontos de vista internos, sem a preocupação com grandes painéis, alinhava e faz com que suas cenas, aparentemente fortuitas situações de vida de província, sejam pretextos para construções narrativas arquitetônicas. Ou polifônicas. Uma cena de Madame Bovary pode ser enxergada em Manet. A vida sensual da protagonista, que apenas se entrega, sem que isso precise ser explicado se não como construção romanesca, constrói a mimesis da modernidade. Não é necessário que se recorra a práticas de explicação de comportamentos a partir de uma causalidade para que se negue aquilo que Costa Lima enxerga na obra: sua natureza como mimesis de si mesma, obra que demanda um leitor que reconheça os elementos que formam a narrativa literária.

Tal como em Manet, uma cena fortuita. Não há como se exemplificar, evidentemente, a natureza de mimesis da produção de Madame Bovary em poucos trechos. Mas a condição de cena fortuita da pintura pode ser percebida:

 
Algumas vezes pensava que aqueles eram, apesar de tudo, os mais belos dias da sua vida, a lua-de-mel, como se dizia. Para lhe saborear a doçura, teria sido necessário, sem dúvida, partir para aqueles países de nomes sonoros onde os dias imediatos ao do casamento têm mais suaves ociosidades! Em confortáveis assentos de mala-posta, sob cortinas de seda azul, sobem-se a passo caminhos escarpados, ouvindo a cantilena do postilhão, que ecoa na montanha com os chocalhos das cabras e o ruído surdo da cascata. Quando se põe o Sol, respira-se à beira dos golfos o perfume dos limoeiros; depois, à noite, nos terraços das vivendas, a sós, com os dedos entrelaçados, contemplam-se as estrelas e fazem-se projectos. Parecia-Lhe que certos lugares da Terra deviam produzir felicidade, como as plantas próprias de um terreno que se desenvolvem mal noutro lugar. Não poder ela debruçar-se à varanda dos chalés suíços ou encerrar a sua tristeza numa casa de campo escocesa, com um marido trajando casaca de veludo preto, com grandes abas, botas flexíveis, chapéu bicudo e punhos de renda! (FLAUBERT, 2000, p. 39)

 
A cena faz pensar no que as figuras de Manet poderiam estar pensando. Essa felicidade gratuita, aqui, motiva inúmeras interpretações. A literatura não tem como evitar. Seu realismo acaba sendo explicação. Na pintura, o real pode ser apenas uma imagem.

Sim, Gombrich compara estéticas e, ao fazê-lo, ilustra com o que aparece como imagem do real, tanto na pintura quanto na literatura. Mas é preciso ver mais nessa comparação: a mimesis da modernidade está escancarada em Manet, assim como em Flaubert; Courbet e Zola são copistas da realidade. Não há que se ver neles a grande invenção, a técnica revolucionária, como é saliente nos outros dois.

 
 

FLAUBERT, G. Madame Bovary. Tradução de Fernanda Ferreira Graça. Lisboa: Publicações Europa-América, 2000.

GOMBRICH, E. H. História da Arte.  Tradução de Álvaro Cabral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Volume 1. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.

LIMA, L. C. Mímesis e modernidade. Formas das sombras. 2ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 2003.

ZOLA, E. Germinal. Tradução de Francisco Rage Bittencourt. 2ª ed., São Paulo: Martin Claret, 2006.

 

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