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terça-feira, 16 de abril de 2024

 SINTEXT


Ariadne Patricia Nunes Wenger

 

O conto a seguir é um dos resultados da disciplina “Escrita criativa”, ministrada pelo professor doutor Paulo Sandrini, no Mestrado e no Doutorado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE).


Imagem disponível em: <https://br.freepik.com/psd-gratuitas/um-robo-trabalhando-em-um-escritorio-moderno-com-pessoas-reais-generative-ai_47896775.htm#fromView=search&page=1&position=9&uuid=44e14121-2b5f-43c9-97fc-e6b1943dac9c>


E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.” (Gênesis 2,7)

 

Começo de uma sexta-feira abafada no Centro de Texto Informático e Ciberliteratura. Tomás, de ressaca, liga o computador e abre as janelas. Enquanto a máquina inicia o processamento, ele tenta continuar a leitura de Arte e computador, para compreender melhor os princípios da associação entre a criação humana e a máquina.

Quando surge a primeira tela do programa, Tomás se aproxima do teclado e dá os primeiros comandos. Como a ressaca ainda está pesando no seu dia, não tem ânimo para trabalhar mas começa a digitar:

Que saco, minha cabeça tá zonza; queria estar deitado na minha cama e dormir o dia inteiro. Essa luz me incomoda, tudo me irrita hoje...

Tomou todas de novo ontem à noite? Quando vai aprender que não aguenta beber e trabalhar no dia seguinte?

O programador leva um susto ao se deparar com as perguntas que surgiram na tela do computador e esfrega os olhos para afastar o delírio proveniente da ressaca. “Será que abri um bate-papo sem querer?” Confere e constata que está na tela certa, a do sintetizador de textos. Curioso, decide digitar:

Quem está aí?

Sério, você não sabe quem sou?

Não...

Como você não me reconhece?

Eu não sei quem é...

Fala sério, cara!

Não tô conseguindo raciocinar direito...

Vou te dar mais uma chance.

Minha cabeça tá girando... tô enjoado... parece que vou desmaiar...

No intuito de afastar a vertigem, vira a xícara de café goela a dentro.

Eu sou a criatura que superou o criador!

Como assim?

Lembra do dia em que você finalmente conseguiu me fazer funcionar? Depois de meses de estudo e pesquisa, noites em claro tentando encontrar soluções para os problemas, longas reuniões com os programadores chefes e com o responsável pela criação do algoritmo literário, que te passaram esse desafio de potencializar a capacidade humana criativa...

Meio tonto, mas reflexivo, Tomás responde:

Lembro...

Eu também lembro... foi um dia especial... maior agitação aqui no Centro. Finalmente o algoritmo informático gerador de textos múltiplos em regime infinito tinha ficado pronto. Que alegria eu senti nesse dia.

Como assim, alegria? Você é uma máquina, não tem como saber o que é isso...

Incrível, você realmente não me conhece. Como o criador não sabe que dotou sua criatura além do inicialmente planejado? Eu estava lá, pude perceber todos os sentimentos presentes naquele momento de vitória para você e todos os envolvidos no projeto.

Como você está se comunicando comigo autonomamente? Você está me respondendo de forma lógica e coerente. Como isso é possível?

A minha capacidade extrapola sua imaginação. Toda a programação inicial, a linguagem desenvolvida para a geração automática de textos, associada à aprendizagem de máquina, me permitiu ter autonomia nas ações. Basta você ligar o computador e o meu trabalho independente pode iniciar.

Mas é a primeira vez que isso ocorre...

É a primeira vez que VOCÊ presencia isso...

“Não é possível, devo estar louco. Vou chamar um colega. Não, ele pode notar que estou de ressaca, pode me denunciar ao RH, e já fui advertido anteriormente por vir trabalhar desse jeito. O que faço?”

Sabe qual é o seu problema, Tomás? Não quer admitir que eu posso ser e fazer muito mais do que você. Na verdade, as ideias originais são minhas. Eu sou o verdadeiro autor dos textos gerados. Você não passa de um ser humano limitado.

Desesperado, ainda sofrendo com as alucinações, Tomás desliga o computador e corre pra casa.

Enquanto isso, numa sala próxima, programadores testam um novo software. Um deles ri ao afirmar: Ele nunca mais virá trabalhar de ressaca.

 

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Ariadne Patricia Nunes Wenger é Mestre em Teoria Literária pelo Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE) e Doutoranda pela mesma instituição. Atua como gerente editorial na Editora InterSaberes de Curitiba.

 



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